07/06/2011

Cartas de Lille XXII




Faltam dois meses para encerrar o que foram os melhores, os mais loucos e indesculpaveis dias da minha vida. Fui tudo o que, por definição, não sou e que, no fundo, fui feita para ser. Uma hedonista, uma irresponsavel, uma vendedora dos sonhos alheios. Uma perdedora de sorriso nos labios. Ontem, como sempre, no regresso a casa, revi-me na magia de ter 21 anos e caminhar sozinha e sem trunfos, na noite de Lille ou de outra qualquer cidade da Europa. Em mim trago um italiano que desapareceu sem rasto, um marroquino que queria o coração de todas as mulheres do mundo, um iraniano encantador de serpentes. Debaixo da pele, os amigos por quem teria dado a vida, não importa os muros que mantivemos entre nos: Espanha, Polonia, Hungria, Estonia, China. Tudo isto aqui tão perto. Tudo isto que era o meu chão e que se desvanece aos poucos, com a facilidade das coisas precarias.

E depois, as minhas partidas. A noite fria de Paris na entrada da Catedral Notre Dame, onde esperei sozinha e, apesar de tudo, não consegui chorar. O ritmo alucinante dos sem sono, sem manhãs e sem regras. A pontualidade das cervejas que nos traçam o sangue e nos empurram para o vendaval de historias que tu nunca ousaste ouvir.

Amsterdam. Para sempre. A eterna memoria de um romantismo que nunca existiu e contra o qual luto para que não se repita nunca, nunca mais. E ainda assim, todas as noites acordo nos braços do mesmo canadiano de olhos claros, com o mesmo sabor metalico de raiva, desilusão, capricho.

E de volta a Lille, toda a gente que me prende na eternidade de um so olhar e que me faz tremer por dentro. Os franceses que me esperam ainda naquela mesma estação de metro. O mercado dos domingos de manhã onde procurei o meu sentido, meses a fio. O Brasil dos meus sonhos, a Alemanhã das nossas melhores pessoas, toda esta vontade doente e insuportavel de partir e de nunca chegar, de repetir Bruxelas uma e outra vez, de ser feliz apesar de tudo estar errado, de seguir descuidadamente com os dias, sem ousar olhar para tras.

Um dia talvez, a alucinação acabara por passar. Mas hoje ainda, vivo o que so se vive nos filmes. Dou por mim entre o precisar de me encontrar e o precisar contante de me perder. Não sei quem realmente sou, mas nunca o soube. Nada disto me trouxe sabedoria, dinheiro ou verdade. Apenas magia. E, entre nos, não sei se alguma vez poderia pedir mais que isso. Vivi o que as mulheres como eu alguma vez vivem. E por tudo isto, e pela inconsequência dos amores bilangues, das paixões mudas e dos amigos eternamente de partida, obrigada.