12/12/2009

Cartas de Coimbra XXXVII

midi. by *moumine


Percebi talvez que fugir nunca vai realmente adiantar de nada. As batalhas perdem-se na mesma, não importa com quanta força fechemos os olhos. Na rádio vai tocar sempre a mesma música à hora errada, por muito que a gente finja. E a gente finge para se poder aguentar. Na nossa concha, sabemos coisas que mais ninguém sabe e vemos coisas que mais ninguém vê: o lançar dos dados a definir a história dos nossos acasos e dos nossos riscos; a estúpidez de um lápiz azul a rasurar-nos, a excluir-nos e a isolar-nos.
Hoje percebi que ficar e ver as coisas acontecerem talvez não nos mude tanto assim. No fundo eu sei que vai ficar tudo bem. E quando ficar, tomara que seja para ser diferente mas acima de tudo irreversível. Para que não doa mais. Para que não doa como tantas vezes nos doeu. Para que não doa como ainda nos dói. Às duas.
Hoje sei que se olhar bem de frente não me vou atraiçoar tanto assim. Vou esperar pela hora certa de dizer, pela hora certa de virar as costas, pela hora certa de ir embora de vez. A solidão é um lugar comum, por muito que te apliques, e haverá sempre um erro de simetria entre nós dois. A música na rádio diz que apenas um beco triste e vazio dará eco a quem nunca teve voz. Este é o meu beco, amor. O meu verdadeiro beco. E isso enche-me de medo.
Tenho medo que me vejam por dentro e desfaçam em nada os emaranhados de espelhos partidos que trago comigo. Quando nos faltam alicerces, até as más ideias nos suportam e nos tentam manter de pé. Porque, no fim da jornada, tudo isto será um quadro de loucura e perder aos poucos o compasso de uma vida normal não nos fará piores pessoas, nem tão pouco piores mulheres.
Tomara que entendas tudo isto. Esta podia ser a última carta, mas não consigo abdicar do significado que tem poder amar-te mesmo assim, tão absurdamente longe de ti. Um dia isto será talvez a única coisa que vai restar, da minha voz e de mim própria. A vida será para sempre aquele último comboio em que entrei e que me irá atravessar vezes sem conta, até que finalmente já não saberemos como é estar em casa.
Ainda bem que (ainda) aí estás.

03/12/2009

Cartas de Coimbra XXXVI

Consider me dead. by ~RedFraction



Nunca direi porque é que naquela noite me fui embora. Há mentiras que fazem todo o sentido, quando disso depende tudo o resto. Nunca direi porquê um teatro tão mal encenado: às vezes procuramos refúgio nos sítios mais desadequados e isso acaba inevitavelmente por nos envergonhar. Principalmente quando o refúgio somos nós; ou o nosso regresso a casa, ou o constragimento que é decidir de impulso que algo está mal e nós não somos capazes de continuar a fingir.
Nunca direi porquê, precisamente naquela noite, sair pela porta dos fundos. Eles olham e até sabem que minto sobre quase tudo. E para mim a porta dos fundos será sempre uma fuga aos problemas, uma saída que o pânico me mostra onde fica, um poço de ecos onde apetece guardar as memórias más, o despeito e a vulgariedade.
Nessa noite, deitei-me e sonhei que era autista e que as coisas não seriam capazes de me magoar outra vez. Nessa mesma noite, saí pela porta dos fundos sem dizer nada porque não eram apenas naúseas, mas qualquer coisa que me ardia em todos os sítios, que me sugava as palavras boas e me gelava a ponta dos dedos. Saí por impulso, por inconsciência, por necessidade e por tristeza. Saí porque estava sozinha e porque precisava de estar sozinha. Saí por raiva, ou por capricho, ou por preguiça, nem sei... Saí porque a noite lá fora não era mais fria que as ideias, não era tão inesperada quanto as consequências, não era tão noite quanto o dia seguinte.
11/11/2009