12/12/2009

Cartas de Coimbra XXXVII

midi. by *moumine


Percebi talvez que fugir nunca vai realmente adiantar de nada. As batalhas perdem-se na mesma, não importa com quanta força fechemos os olhos. Na rádio vai tocar sempre a mesma música à hora errada, por muito que a gente finja. E a gente finge para se poder aguentar. Na nossa concha, sabemos coisas que mais ninguém sabe e vemos coisas que mais ninguém vê: o lançar dos dados a definir a história dos nossos acasos e dos nossos riscos; a estúpidez de um lápiz azul a rasurar-nos, a excluir-nos e a isolar-nos.
Hoje percebi que ficar e ver as coisas acontecerem talvez não nos mude tanto assim. No fundo eu sei que vai ficar tudo bem. E quando ficar, tomara que seja para ser diferente mas acima de tudo irreversível. Para que não doa mais. Para que não doa como tantas vezes nos doeu. Para que não doa como ainda nos dói. Às duas.
Hoje sei que se olhar bem de frente não me vou atraiçoar tanto assim. Vou esperar pela hora certa de dizer, pela hora certa de virar as costas, pela hora certa de ir embora de vez. A solidão é um lugar comum, por muito que te apliques, e haverá sempre um erro de simetria entre nós dois. A música na rádio diz que apenas um beco triste e vazio dará eco a quem nunca teve voz. Este é o meu beco, amor. O meu verdadeiro beco. E isso enche-me de medo.
Tenho medo que me vejam por dentro e desfaçam em nada os emaranhados de espelhos partidos que trago comigo. Quando nos faltam alicerces, até as más ideias nos suportam e nos tentam manter de pé. Porque, no fim da jornada, tudo isto será um quadro de loucura e perder aos poucos o compasso de uma vida normal não nos fará piores pessoas, nem tão pouco piores mulheres.
Tomara que entendas tudo isto. Esta podia ser a última carta, mas não consigo abdicar do significado que tem poder amar-te mesmo assim, tão absurdamente longe de ti. Um dia isto será talvez a única coisa que vai restar, da minha voz e de mim própria. A vida será para sempre aquele último comboio em que entrei e que me irá atravessar vezes sem conta, até que finalmente já não saberemos como é estar em casa.
Ainda bem que (ainda) aí estás.

03/12/2009

Cartas de Coimbra XXXVI

Consider me dead. by ~RedFraction



Nunca direi porque é que naquela noite me fui embora. Há mentiras que fazem todo o sentido, quando disso depende tudo o resto. Nunca direi porquê um teatro tão mal encenado: às vezes procuramos refúgio nos sítios mais desadequados e isso acaba inevitavelmente por nos envergonhar. Principalmente quando o refúgio somos nós; ou o nosso regresso a casa, ou o constragimento que é decidir de impulso que algo está mal e nós não somos capazes de continuar a fingir.
Nunca direi porquê, precisamente naquela noite, sair pela porta dos fundos. Eles olham e até sabem que minto sobre quase tudo. E para mim a porta dos fundos será sempre uma fuga aos problemas, uma saída que o pânico me mostra onde fica, um poço de ecos onde apetece guardar as memórias más, o despeito e a vulgariedade.
Nessa noite, deitei-me e sonhei que era autista e que as coisas não seriam capazes de me magoar outra vez. Nessa mesma noite, saí pela porta dos fundos sem dizer nada porque não eram apenas naúseas, mas qualquer coisa que me ardia em todos os sítios, que me sugava as palavras boas e me gelava a ponta dos dedos. Saí por impulso, por inconsciência, por necessidade e por tristeza. Saí porque estava sozinha e porque precisava de estar sozinha. Saí por raiva, ou por capricho, ou por preguiça, nem sei... Saí porque a noite lá fora não era mais fria que as ideias, não era tão inesperada quanto as consequências, não era tão noite quanto o dia seguinte.
11/11/2009

05/11/2009

Cartas de Coimbra XXXV

existence by =Roinja

Existem elas e existimos nós. As que não têm nome. As que não têm rosto. O tudo que cabe sempre aos mesmos, os milagres que aos poucos se corrigem e se acomodam no devido lugar.
Tenho direito a este sentido de posse. A este bocadinho de fé e de cumplicidade que era meu, apesar de tudo. Tenho direito à tristeza, ao abandono, ao nó no estômago que me puxa para baixo, me revolta e me faz uma pessoa pior. Tenho o direito de não querer que me tirem os milagres. Sem eles, fico reduzida ao elo esquecido de uma equação lógica cuja solução todos preveram. Por razões que a medicina não explica, a minha cara é fácil de esquecer. Sou literalmente a multidão que envolve as pessoas bonitas. Faço parte de um contexto, um tijolo sem feições que ninguém reconhece.
Ao voltar atrás, olho com atenção e não sei o que fiz mal. Em que fase da vida perdi o andamento e o direito a ser notada. Talvez tenha sido sempre assim. Talvez tenha sido sempre apenas isto: a combinação de duas mãos nos bolsos e um sorriso triste e transparente.
Perdi o meu melhor amigo com o virar da estação. Seria com ele que ouviria pela última vez a Balada de Despedida do 6º ano Médico. Seria com ele que, um dia, quem sabe, da noite para o dia, eu ficaria adulta. Com quem passaria a última Queima, como se fosse a primeira. E ele choraria, e eu choraria. E esse seria o meu milagre porque pela primeira vez, era algo de genuíno que acontecia sem conquista, sem ressentimento, com a espontâneadade das coisas que secretamente sempre quisemos.
Mas há sortes que não são nossas e, tarde ou cedo, as circunstâncias acabam por fazer também da nossa vida um perfeito cliché.

19/10/2009

Cartas de Coimbra XXXIV


Sentia-me à vontade em tudo, isso é verdade, mas ao mesmo tempo nada me satisfazia. Cada alegria fazia-me desejar outra. Ia de festa em festa. Acontecia-me dançar noites a fio, cada vez mais louco com os seres e com a vida. Por vezes, já bastante tarde, nessas noites em que a dança, o álcool leve, o meu desenfreamento, o violento abandono de cada qual, me lançavam para um arroubo ao mesmo tempo lasso e pleno, parecia-me, no extremo da fadiga e no lapso de um segundo, compreender, enfim, o segredo dos seres e do mundo. Mas a fadiga desaparecia no dia seguinte e, com ela, o segredo; e eu atirava-me outra vez.


Albert Camus, in "A Queda"

06/10/2009

Cartas de Coimbra XXXIII

I wish you were here by *duchesse-2-Guermante



Às vezes volto àquela tarde de chuva, à porta de casa. Ao inadequado que era estarmos os dois sentados no chão da rua, com tanto que conversar. Tenho saudades da sensação boa, da expectativa, do medo miudinho a fazer daqueles dias um mapa de hipóteses que não se esgotavam. Tenho saudades do teu olhar baralhado, tão parvamente franco, tão erradamente deslumbrado. Quem me dera ser a mesma mulher que fui nesse dia. Chegava por mim própria. Era um quadro branco onde não existiam memórias, nem lugares, nem cheiros, nem coisa nenhuma. Contava apenas comigo e estava bem assim. Queriamos um beijo, apenas um beijo e formalizámos as coisas, com a estupidez de uma primeira vez. Estavamos feliz. Meu Deus, como tu estavas feliz! Disseste coisas, falaste em mundos, multiplicaste o sabor que levaste na boca e pediste-me mais. Eu dei-te tudo o que tinha. Sobraram bocadinhos de esperança que já não me alentam. Tenho os bolsos vazios, as costas dobradas, o peito pesado. Fico acordada com a luz apagada à espera de um pensamento que me faça dormir em paz. Não consigo acordar. Quero dormir para sempre.

01/10/2009

Cartas de Coimbra XXXII



Quem é que tu amas? - continuou Murphy. - Eu, tal como sou. Podes desejar o que não existe, não podes amá-lo. - Nada mal, para um Murphy. - Se assim é, por que diabo te esforças tanto para me modificar? Para poderes deixar de me amar - aqui, a voz subiu e atingiu uma nota bastante honrosa - para deixares de estar condenada a amar-me, para seres dispensada de me amar.



Samuel Beckett, in 'Murphy'

16/09/2009

Cartas de Coimbra XXXI

Renewed preface by ~SayinBayan
Tento sentir as pessoas o mais que posso. Devo-te isso. Fazer da vida uma novidade, acomodar-me a novas arestas, preencher-me com outras formas de amor. Seguir em frente, no sentido em que todas as promessas se fecham e se apagam pela última vez. Sou feita de material diferente do teu e já não me importo. Um dia amaste-me mesmo assim. Apesar dos olhos húmidos, dos lábios salgados, do corpo estendido. Foi talvez a melhor lição de humanidade que podia ter tido. A desforra que Deus deu às mulheres por se darem assim. E na volta, cabe-me também a mim jogar aos dados com a própria sorte e escolher acordar num outro dia.
Fui ao fim do espaço e voltei. Deixei-te para trás, carregando-te comigo todos os dias nos sítios que mais doem. É assim todos os dias. O viver sem ti, sem que de facto te vás embora. Estás em todo lado. Nas minhas manhãs e nas minhas noites. O teu cheiro finalmente saiu mas ficou o teu tacto. O teu vazio. O teu medo. Há muito tempo que não importo e leio sozinha estas cartas. Um dia hei-de escrever a última e isso consola-me. Fui capaz de coisas do tamanho do mundo, mas isso não chegou. Fui capaz de coisas que ultrapassaram os teus sonhos, mas talvez nunca te apercebas disso. Não é uma história de amor, mas é a minha história e todas as minhas reticências. Não é um livro mas são as minhas cartas. A minha vida trocada por miúdos. Os meus porquês. Todos os meus segredos e tudo aquilo que me pedes para ter vergonha, mas eu não consigo. Tento sentir as pessoas o mais que posso. Devo-te isso. Deves-me também tu a mim.

10/09/2009

Cartas de Lisboa IX


Resumir o significado das coisas será sempre impossível, porque disso dependem as vezes que nos partiram ao meio, nos tiraram a virgindade às ideias, nos proibiram de ser completos. Não temos coragem de produzir mudança, não achamos bem desistir do que nos custou tanto a tornar firme. Somos nós que estamos em causa, no fim de contas. É tudo aquilo que aparentemente nos mantém à tona. Olho para trás e frequentemente tenho vontade de me ter mantido naive, uma eterna virgem sem pressa ou desilusões. Talvez assim o tempo passasse mais devagar. Talvez assim a distância entre nós e o chão fosse mais curta. Porque tudo é afinal uma questão de medo, se nos vamos ou não aguentar, se vamos ou não voltar a ser felizes.
Sei exactamente o que está certo, só não entendo porque tenho de o fazer. Não é de mim dobrar a própria vida em quatro e seguir em frente. Não é de mim ter coragem para devolver o respeito e a dignidade ao meu mundo. Não é de mim querer ficar sem ti. Ficar sozinha.

05/08/2009

Cartas de Lisboa VIII


Há momentos que não são mais do que hinos tristes à vida. Nós olhámos para os nossos quando eles choram e sabemos que a mágoa se propaga com os olhos, com a raiva que temos uns pelos outros, com o medo. Olhamos para os nossos velhos, para o destino falhado dos nossos velhos, para aquilo que eles chamam de arrependimento, para aquilo que eles chamam de desistência. As pessoas escondem-se dos acontecimentos numa concha muito própria e deixam a vida arrastar-se porque ela depende não só de amor e respeito, mas também de coisas logísticas como a coragem. Os velhos, mesmo antes de serem velhos, desistem das coisas e perdem o amor próprio. Os novos fazem a mesmíssima coisa. Ficamos todos presos uns aos outros. Ficamos presos às lágrimas dos nossos velhos, à tristeza que nos espera nas esquinas de cada felicidade, à confiança que perdemos – porque as mulheres ruins e os homens no geral fizeram com que a perdessemos.
Vivo na convicção que o destino não nos conduz a um fim, mas que garante que cada traição seja vingada. Solidão com solidão se há-de pagar. Não por maldade, sim por fatalismo. O casamento já pouco tem de sagrado, mas a Confiança é tudo. E mulher que tira isso a outra mulher não vale nada. Absolutamente nada.

29/07/2009

Cartas de Lisboa VII

Mujeres al borde de um ataque de nervios, Pedro Almodovar 1989


¿Cuántos hombres has tenido que olvidar en toda tu vida?
É com esta franqueza que Almodovar me convence a ver o filme até ao fim. É um tanto naive. Roça, como afinal a película inteira, o mau gosto, o burlesco, a falta de simetria de um história de amor falhada regada a gazpacho e sonoríferos. Perdoem-me os apreciadores, é um filme detestável. O que eu precisava hoje era de uma coisinha elegante. Não deixa de ser irónico, contudo. Aquela ali sou eu. Aquela ali, a personagem dos sapatos vermelhos, dos palavrões e das saias curtas. Sou eu e somos todas nós. Coño, diria. Também a mim me apetece um cigarro para o apagar na cama onde tantas vezes fizemos amor. Também eu conto com o dia em que dirás, pelo atendedor de chamadas, que “ya no me quieres”.
No fim de contas, talvez a realidade seja mesmo assim, burlesca. Talvez sejamos mesmo assim, feias, loucas, de perninhas finas, de olhar embriagado. Talvez os nossos namorados sejam terroristas, talvez nos usem, talvez nos mintam. Talvez as nossas melhores amigas se queiram atirar da nossa varanda para que reparemos nelas. Talvez exista algures um homem que valha a pena, que traia a mulher para ficar connosco, que seja gago, que repare telefones, que odeie a mãe e se arrisque por nós. Talvez a rotina seja realmente feita de coisas inverosíveis, sem que isso mude coisa alguma. Estamos apaixonadas e isso transtorna-nos de morte. O mundo tem de parar para deixar passar esse vendaval de medos, de ódios e estrogénios, ao sabor das coisas que eles dizem e que nós não podemos esquecer. Não importa, afinal, em que língua nos insultamos, apesar de em espanhol soar tanto melhor.
Eu, porém, já me olvidei de todos os homens que fui obrigada a esquecer com o tempo. Acho simplesmente que não deveria ter sido assim. A vida pode ter o mau gosto de uma comédia espanhola, mas os infortúnios raramente nos dão tanta vontade de rir. Às vezes parece que já só ficamos pelo sexo, pelo conforto físico. Não somos capazes de partilhar mais nada. Queremos ser melhores mulheres, com a paciência que só um par de cornos nos consegue dar. Queremos estar na retaguarda dos seus problemas, das suas angústias e não levar a peito as dúvidas que nos põem em causa a nós. Mas a certa altura percebemos que estamos a razar a fronteira do “não há nada que possas fazer”. E aí perdemos a vontade de tudo.

30/06/2009

Cartas de Coimbra XXX






Está na profundeza das ideias o ser amada, o ser feliz, o ser melhor. Queremos tudo isso num pacote de viagens que nos leve para longe e que nos restitua, um dia, ao sítio onde de facto pertencemos. Há dias em que me ponho a pensar nas coisas e nas coisas que acontecem e que mudam para sempre a vida das pessoas. Imagino repetidamente coisas terríveis que surgem sem ninguém contar com elas e que deitam por terra todos os planos, todas as banalidades, todas essas concepções enviesadas dos problemas. Penso demasiadas vezes nos azares e no excesso de ironia das coisas. Em como será formar-me um dia e não saber o que fazer a partir daí. O peso da responsabilidade, das contas por pagar, da solidão de um quartinho alugado na baixa de Coimbra. No fim de contas, o peso de um luta diária por um espaço que seja meu. Por um espaço que seja realmente meu! Sinto que não sou senhora sequer das minhas ideias. Uma estudante universitária, com a promessa de uma auto-suficiência tardia. Das que trabalham mas não se sustentam. Nem se sentem capazes disso. Temos todos medo de não sermos capazes. Medo de sermos pequeninos para sempre, de não recuperarmos o brio de antigamente, de nos deixarmos ir passivamente para algum lugar, eventualmente melhor. Temos medo que nos escape alguma coisa. Queremos o mundo e o mundo assusta-nos. Pensamos nas coisas com o embaraço de uma primeira vez. Somos demasiado virgens, apesar de tudo. Olho para trás e lembro-me que Deus me prometeu proteger para sempre. Hoje em dia, Ele só não o faz porque o faço por Ele. Pelo menos é isso que nos ensinam. Depois, seja lá de que forma, encaixamo-nos e ficamos sem saber onde meter as promessas, os caloiros que fomos e sempre seremos, os amigos e o passado. Brindamos pela última vez às inconsequências dos vinte anos e esperamos acordar adultos feitos, mulheres na sua completa acepção da palavra, para podermos fingir que confiamos nas pessoas que se deitam ao nosso lado. No fundo no fundo, não queremos tanto assim, porque sabemos que há coisas terríveis que não se devem mudar. Serão sempre os mesmos rituais de passagem.

16/06/2009

Cartas de Coimbra XXIX

by ShotgunxSerenade


O tempo a esgotar-se e aos vinte anos temos medo de ficar sozinhos para sempre. O tempo a esgotar-se e a pressão que todos os dias nos obriga a coisas que não somos capazes. Na minha palma da mão alguém leu que eu não seria feliz assim. Os tristes acasos são a porta de entrada para um mundo de soluções. Ser livre de sentir não existe. Ser livre não existe. À procura de um porto seguro para que tudo o resto faça sentido, temos vinte anos e temos medo de ficar sozinhos para sempre. Estamos cansados que tudo nos falhe. Estamos cansados de correr, de construir uma muralha inabalável de projectos, de ter uma mão cheia de ideias mas nenhuma certeza. Mas nenhuma segurança.
Fizemos asneira repetidamente. Falámos demais, cedo demais, alto demais. Coimbra não nos perdoa tudo e nós seguimos na única direcção que conhecemos. Pedimos beijos e abraços em troca de vinho, fomos fiéis às pedras da calçada mas não às promessas dos amigos. Seguimos juntos sem dizer nada. O mundo acabou para quase todos nós, levamos a corda ao pescoço e as mãos atadas. Temos fome, temos sede de coisas novas. Falta-nos cor. Falta-nos tempo para nos sentarmos e chorarmos até tarde. Falta-nos banhos de chuva, banhos que nos lavem a alma, que levem a secura, que nos restituam a paixão. Precisamos todos de ler romances outra vez e de acordar com alguém ao nosso lado. Alguém que não consiga dizer que nos ama. Precisamos todos de menos espaço, para não nos sentirmos tão sozinhos.



9/6/2009

02/06/2009

Cartas de Coimbra XXVIII


Eu sou pela vida, pela liberdade, pela perdição. Sou pela inconsciência,pela consistência, pelos desejos e não pelos sonhos. Sou pelos planos de viagem, pelos amigos, pelos melhores amigos, pelas longas madrugadas de felicidade e não de insónias. Sou pela vingança e não pelo tempo perdido. Sou pelas histórias de amor e não pelas promessas. Quero ter aquele brilhozinho nos olhos de quem regressa da vida e guarda consigo as experiências, os acidentes, os sustos, os riscos, a intensidade de uma decisão precipitada. Quero aquela gargalhada aliviada de quem não precisa nunca mais de chorar. Quer ser uma resistente, uma lutadora, uma artista. Quero ganhar a vida porque a mereço, porque a provei de todas as forma e feitios. Quero dar a volta por cima sempre que o ar me faltar. Quero tomar um café com um homem bonito, num país distante. Quero descobrir que a minha cidade Natal é Paris, é Roma, é Zagreb. Quero deitar-me num campo cheio de papoilas e esquecer-me dos bichos, da sujidade, das horas. Quero vencer o cancro, o meu que é psicológico, e o dos outros. Quero ler Balzac outra vez, tratados imensos sobre a vida de quem nunca existiu de verdade, sobre os espectatores, sobre os invisíveis. Quero ser insensível às coisas más, às traições dos homens, às faltas, aos excessos. Quero dormir na praia, aquecida com um abraço. Quero sair impune da vida. Quero que amar alguém seja indolor, seja simples, seja suficiente. Quero acreditar sem ter que pagar juros por isso. Quero ter um gato. Um cão, dois peixinhos e uma morada para enviar as minhas cartas. Quero que goste de mim. Da expressão dos meus olhos quando se riem, da minha voz quando falo a verdade, do meu peito aberto à espera de um feedback. Quero que seja pela vida.




Hoje fui às compras: a tua música tocava em todas as lojas em que entrei. Eu devia ter seguido o conselho da vida e arriscado mais. Uma mudança radical enquanto o mundo estivesse a dormir. Acordaria de manhã e seria uma pessoa que não querias perder de vista. Teria a tez e os lábios brilhantes, um assobio na ponta da língua capaz de me mostrar o caminho.

15/05/2009

Cartas de Coimbra XXVII

by oprisco


Tenho saudades, digo-te em surdina. Olho-te nos olhos e espero que me respondas a um espaço inteiro de completo vazio. Trago-te comigo pendurado ao peito, lembro-me de ti uma vez ao dia e depois esqueço-te na persistência deste quelque chose que me falta. Na dureza das escolhas, fecho olhos e entro de rompante na vida dos outros, desviando o sentido às palavras para que nunca me levem de novo a ti. Tenho na boca a persistência de um sabor amargo, o ardor de um café demasiado quente, as feridas de uma língua trincada para que o mundo não doesse tanto assim. Embrulhada no último frio da estação, algo vai mal no reino desta minha glória de falar demais. As mágoas de sempre aprimoradas sem o direito de se ser uma vítima a valer. As minhas recordações lixadas nos cantos para se poderem encaixar nas tuas. As paixões que nunca nos saiem do peito, que se entalam na voz e que minguam até não serem importantes. Falta-nos ritmo, amor. Às vezes estamos simplesmente à espera que alguma coisa aconteça, que alguma coisa nos afaste, que alguma coisa decida por nós o que fazer a seguir. Às vezes estamos simplesmente a adiar o amor. A adiar as conclusões, a fingir que as coisas más, nós nunca as dissemos, nós nuncas as sentimos.

04/05/2009

Cartas de Coimbra XXVI

naked by ~little-stupid-sophie





Matas-me todos os dias com a tua subtileza. Sinto-a dançar sobre o meu sono, minando tudo o que de bom aconteceu. Desculpa se não te faço feliz. Durmo de dia, trago a vida vestida do avesso, descuido nos promenores. Sinto o martelar das noites na minha cabeça, o ribombar do coração incontrolado, as lágrimas como águas paradas na periferia dos meus olhos fechados. O choro dos amigos, o tic tac das horas de espera, a tua ausência, a tua miragem. Os abraços que não são teus, a presença que não é a tua. As portas que nos batem na cara, com a destreza de quem não sente. É tudo uma questão de nudez, de capricho, de sexo consentido. Faço meus os teus desejos e desejo, assim, por conveniência. Procuramos os dois uma alternativa sem culpa, mas eu no fundo só queria o teu amor: poder lavar-me com as tuas mãos, despir-me com as tuas mãos, prever-me com as tuas mãos. O mundo é um berlinde que me cabe no bolso, mas eu não chego para ti. Eu não sei de ti, não te sinto, não te vejo. Mordo os lábios e ensaio a tua chegada. Prometo ser-te fiel até ao final desta última noite e rezo para que o sejas também. Olho para trás e recordo-me apenas de lençóis revolvidos a meia luz, de um perfume ainda morno, de um beijo na testa a troco de tudo. Do outro lado da estrada, ficaram os meus copos de vinho caídos, uma batina enxuta de lágrimas, um palco vazio. Do outro lado da estrada, ficou Coimbra à mercé das serenatas, à mercé do luto, à mercé das lutas. Coimbra à mercé dos amores de ocasião.

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24/04/2009

Cartas de Coimbra XXV

dissolve by ~colleenyancy

Na verdade esta sou eu, suspensa na paz que é uma vida com as contas pagas e o telefone sem saldo. os amigos cantaram-me um fado de dúvidas, tu ligas para dizer olá e deixas recado. é um registo de dias com maus timmings. gosto de músicas assobiadas. gosto das mãos nos bolsos, das camisas largas, do cabelo em desalinho falando alto a desinibição que não tenho. gosto do sexto sentido das nossas almas gémeas. dos olhos que nos atravessam e que nos dizem, num segundo, mil coisas, sem perguntas, cem respostas. falta-me tacto e, às vezes, faço os outros chorarem. há silêncios duros de aguentar e as palavras levam tempo demais a morrer. o medo é uma ideia gasta, uma música que ficou no ouvido. na verdade esta sou eu, nas paragens de autocarro vazias e frias. as histórias que temos para contar. as músicas e os homens da nossa vida, recuperados dum livro de memórias, de um momento de pouca fé que nos fez recuar e ter de novo 13 anos. penso todos os dias em voltar a dormir no teu corpo como se a eternidade se prolongasse ali e naquele momento, para sempre. os sentidos despertos, o roçar das mãos, o dedilhar dos dedos, o calor que nos queima e apetece, as texturas de todas as nossas preces. Perdoa-me mas às vezes não sou capaz de mais. sigo a ciência dos fortes e dos que sabem fingir. toda eu sou lembranças e coisas tristes. a tremenda e perspicaz vontade de chorar nas horas erradas. os medos que ficam para sempre. Para sempre.
O futuro chegou depressa demais. ontem tivemos os primeiros desgostos, ontem pensámos que nunca seríamos mulheres a sério, ontem tivemos medo de não crescer. o futuro chegou depressa demais e ninguém diria que ainda somos os mesmos. levo as mãos ao rosto e sinto-me igual. o mesmo medo de nunca ser uma mulher a sério. e nos intervalos do tempo, sinto as minhas nove vidas a esgotarem-se com o passar das horas. e faço delas um tributo aos nossos mortos, religiões aparte, apenas porque há lições de vida que só a morte nos dá, e uma delas é o Tempo.

16/04/2009

Cartas de Coimbra XXIV


Colecciono momentos. Momentos de estranheza e vergonha, quando as palavras certas faltaram. Momentos escondida no escuro do anonimato para que ninguém desse por mim. Colecciono flashes também. Flashes de dias nublados, de dias em que nos vimos no espelho e fingimos um olá; flashes de dias como o de hoje: o autocarro que não veio, a piada que morreu sem risos, o sorriso que não teve resposta. O calor de um embaraço, o silêncio a fechar a tua voz e a trancar o que, afinal, não quiseste dizer. Colecciono também imagens, contornos. Colecciono (acima de tudo) medos – o de ficar sozinha, o de estar sozinha, o de fingir e, apesar de tudo, saber que não vale a pena fingir. As pessoas leêm-nos e as pessoas sabem. Mas mesmo assim, não são como cromos nem como namorados, uma colecção completa de medos: medo de se ser de mais, medo de se ser de menos, para todos, para os melhores, para os que eu quero. O medo de falar, o medo de dedos apontados e de segredos contados aos ouvidos. O medo do que os outros pensam. O medo que a insegurança nos engula e faça de nós mentiras. Que a confiança não se conquiste, que a maldade seja um instinto, não uma escolha. Medo que seja tarde de mais, cedo de mais, uma questão redonda que comece e acabe no calor de um refúgio. E tudo transcrito, eu tenho um sonho, e desse sonho uma esperança vã. Um lugar soalheiro, perto do que me faz feliz, deitada nas searas de trigo que me prometeste, no esplendor de se ser velha e poder sentir as coisas como nos filmes. O tempo, a beleza de todas as memórias, o amor que cresceu e que é agora do tamanho das nossas boas decisões. Os filhos, os netos, os bisnetos. As promessas. As ideias que mudaram e que, por isso, acredito que mudarão novamente. A flexibilidade do mundo para que nos deixe criar a nossa vida a partir do pouco, exactamente da forma como a concebemos quando não tinhamos mais nada para além do sonho. E de novo de mãos dadas com o medo, eu tenho uma coleccção de medos que respeito e guardo sob a pele.
2 de Abril, 2009

19/03/2009

Cartas de Coimbra XXIII

ruas de Coimbra

É ao som dos últimos acordes que Coimbra me castiga pelas palavras disparadas em todas as direcções. O nosso sangue hoje é álcool, o nosso sangue é vermelho escuro de um copo de pura estupidez. O nosso sangue hoje é espesso, o nosso sangue hoje é tóxico. O nosso sangue é aquilo que nos burbulha à flor da pele, na ligeireza que é confessar-nos às negras paredes dos recantos mendigos desta cidade. Nada fiz que não escondesse nas entrelinhas um amor maior que a impotência de estar longe de mim própria, que a impotência de ter uma mão cheia de ti e outra sem coisa alguma. Há pedaços de histórias que fomos nós que inventámos, tal era o vazio que consumia o nosso eco. Sobreviver ao que nos tornámos é hoje a tarefa mais dura, o destino mais nobre, a desvantagem de, nestas coisas da vida, a marcha-atrás não existir. Não te peço que me perdoes porque não quero que o faças. Porque não quero que me perdoes a felicidade descartável de uma rotina assim, porque não quero que me olhes por dentro e descubras que és mais feliz sem mim.
Não perdi o seguimento à vontade de morrer lentamente no teu abraço, numa felicidade platónica e meiga. Não perdi o calor dengoso com que prendo o teu corpo ao meu, a tua alma à minha, a tua vida à vida que a sorte ditar. Sou eu da cabeça aos pés, eu antes e depois dos licores destilarem uma noite de altos e baixos, eu quando peço por favor para ouvir a tua voz só mais uma vez. Amo-te com a indiferença dos loucos: preciso de ti, da tua paciência temperada de fogo, do teu cheiro familiar, da tua mão que me segura e que me protege. O que te posso dar é cada vez menos, porque também eu sou cada vez menos. Mas, se me pedisses, cantar-te-ia o rebentar disperso das ondas, as mil cores que existem no sabor da tua lembrança, o único e verdadeiro sentido para tudo o resto.

02/03/2009

Cartas de Coimbra XXII





É tudo uma questão de tempo. Desde o dia em que nasceste, desde aquele fatídico primeiro dia do resto da tua vida, desde o novo recomeço que compraste no virar da estação. Há filmes* que não falam de outra coisa se não de ti próprio. A tua vida no grande ecrãn, a mesma paixão com que jogaste os dados e te esqueceste de arriscar. Perdoa-me se minto, mas vivo de ti como uma árvore de seiva; a virtude de criar raízes bem longe de mim própria; a fidelidade com que te trago comigo em tudo o que de fantástico me acontece. As coisas bonitas, as crianças pequenas, os casais de namorados, o Mondego pintado a lapiz de cera. Sinto Coimbra com a preplexidade de um último adeus e é para ti que construo todas as minhas melhores lembranças. Sei que um dia vou voltar de muito longe e vou procurar-te , vou deitar-me contigo e amar-te pela primeira vez novamente. Vou ousar irresponsavelmente dizer-te que terei meninos não parecidos, mas iguais a ti. Vou falar horas e horas a fio, como se te lesse o futuro no branco dos olhos e te prometesse que a terra, o vento e o mar um dia me hão de caber na palma das mãos.
É tudo uma questão de tempo, repito. Eu não sei dizer de outra forma, o tempo e o espaço têm cheiro e cor e normalmente nome. O meu nome é o teu. A criação invertida de um punhado de anos que serão sempre sobre ti. E em dias assim, eu paro e tento sentir-te como uma memória, o dedilhar dos teus dedos nas minhas costas, o crescer da tua voz soprada ao meu ouvido. O infinito que encontrávamos no sabor das coisas, nos beijos lentos que não tinham tempo, e eram felizes assim.












*The curious case of Benjamin Bunton

15/02/2009

(...)


Acho que ainda estou numa fase da vida em que o secundário foi o período mais inútil que conheci. Preciso falar dele constantemente. No início achei que aliviava, depois tornou-se um hábito. Hoje entendo que faz sentido explicar-me na história daquele dia e hoje, mais que nunca, peço um feedback.


Percebi cedo que não me adaptava às pessoas – àquelas pessoas, entenda-se. Eu queria ir para a faculdade, queria fazer as coisas bem. Era insegura acima de tudo, mas tinhas as minhas convicções, sabia de que cálices não beberia para já, sabia que guerras poderia escolher. Aquelas não eram simplesmente as minhas pessoas.
Um dia aconteceu que os meus colegas de turma quiseram humilhar uma amiga. Se ser-se obesa não era suficiente, escolheram a pessoa mais frágil, a que era mais fácil pisar. E assim surgiram cartazes dela por toda a escola, com versos ordinários, testemunhando só e apenas isto – não gostamos de ti, vales menos que nós. Nesse dia aconteceu eu perceber que era a única, à excepção da visada, que não tinha visto aquele projecto nascer. Naquele dia percebi que aos dezasseis anos não havia ninguém que dissesse: vocês são uns porcos, não valem nada, isso simples e inquestionavelmente não se faz a ninguém! Tirei sozinha os cartazes. Fui a única que a abracei. Os amigos de todos os dias viraram-lhe as costas. Ninguém, porra!, ninguém se indignou, todos se riram. O fato do respeito e da rectidão que vestiam não passava disso mesmo: de aparência. A cobardia nunca foi virtude mas naquele dia enojou-me. Lembro-me – juro que me lembro mesmo! – da sensação de aperto do estômago, do frio, das lagrimas a cairem devagarinho. A raiva veio depois. Veio com o tempo, com a instabilidade da consciência que sabe que devia ter feito mais. Veio porque estava sozinha e isso era pura e simplesmente errado.

Isto teve lugar há quatro anos atrás. Espero que entendam a dimensão desta história, acima de tudo, deste desabafo. Definitivamente não vão sentir a mesma indignação através de um discrição tão sintética.O carácter de quem viveu esse dia estendeu-se a todos os outros dias e a minha voz muda também. De alguma forma acho que podia ter sido mais atingida e tranquiliza-me acreditar que a minha forma de estar me protegeu disso. Por algum motivo, é uma lembrança que não me deixa, que se repete diariamente. Eu sei que fiz muito pouco. Não trago a consciência tranquila. Sei também que não desperdiçaria uma oportunidade de vingança. Uma nova e derradeira oportunidade de reescrever as coisas, de envergonhar as pessoas pequenas, as medíocres, de corrigir as falsas memórias que deixaram.

27/01/2009

Cartas de Coimbra XXI


Eu não contava que chovesse tanto. Tenho ainda a vida inteira para sentir a chuva e por isso eu não contava que hoje, logo hoje, chovesse tanto. Vi o dia chegar pela enésima vez com o trote do comboio. Dormi à espera de acordar já na viagem de regresso. Não me custa estar aqui, custa-me apenas estar longe. Longe do ócio que é parar o relógio e deitar-me contigo para sempre. Quando te olho assim tão perto vejo a vida a fugir-me e a ideia de que tudo o que era pleno, um dia acaba. Escondo-me debaixo dos teus braços, sei que te entrelaças em mim porque me sentes partir. É melhor assim e tu sentes alívio nisso. Vemos as horas a soluçar para nós depressa demais. O nosso amor foi sempre um amor de minutos contados. Hoje foi diferente. Condensados num espaço que era impossivelmente só nosso. Palpando no escuro respostas para todas as dúvidas que recaiem sobre o depois. Perguntamos a todos os beijos onde isto nos leva, onde isto acaba, como não sofrer depois de uma manhã de chuva assim. E quando sais por fim, fica o desejo de que todas aquelas promessas se transformem em motivações, de que todas essas motivações se transformem em respostas, e de que todas essas respostas nos mantenham jovens eternamente. Quando sais por fim, fica o cansaço no corpo, os olhos brilhantes, o meu cheiro e o teu. Fica o silêncio comprometido de um segredo que detruímos os dois. E um dia, quando eu voltar, vou puder olhar-te novamente e beijar-te, sem saber o que mudou desde a última vez. Vou querer saber o que tu nunca vais querer contar. Vou querer estar na tua vida sem que tu deixes. Vou querer voltar atrás e nunca ter sentido assim.

16/01/2009

Cartas de Coimbra XX

As intermitências que são dúvidas, que são limites, que é um destino de tentativas, que é um lugar melhor prometido a quem não foi capaz de lá chegar. O fermento de uma vida que criou em nós a necessidade de protecção, porque falhámos e porque nos cobram o valor que nunca foi nosso. Cair e recomeçar como parte fundamental da história. Sentir que o que fizemos foram gestos vagos, insuficientes, desviados. Não ter frutos. Lutar no universo das pessoas melhores, ser-se sempre pequenino, ser-se sempre dispensável. Às vezes vestimos a invisibilidade para que não se repare nas linhas a vermelho do nosso mundo. Se voltassemos atrás, fariamos diferente. Se voltassemos atrás, fariamos melhor. Mas é mentira. O corpo pregado ao chão pesa mais que a consciência e a vontade de andar. Pesa mais que a infinitude de lições que tirámos dos nossos erros e dos erros dos outros. Pesa mais que o medo de falhar, pesa quase tanto como o hábito de ficar para trás. O nosso corpo pregado ao chão pede socorro e não se acode a si próprio. Escreve poesia, chora o destino, inventa charadas, mas não corre atrás do ponteiro dos relógios. Sabe o tic-tac de cor, tem na boca o sabor das coisas bem faladas, mas não diz, não fala, não faz. O nosso corpo morreu na inércia de querer as coisas sem as conquistar. Morreu nas oportunidades desperdiçadas de fazer as coisas bem. Morreu no tempo esticado a jogar aos dados com a vida. O nosso corpo pregado ao chão perdeu a razão e nós com ele perdemos tudo o resto. Tomara que o relógio espere por nós, tomara que um dia a gente aprenda e corra atrás.

02/01/2009

Cartas de Lisboa VI


Existe uma ideia escondida na ponta dos teus dedos. Uma ideia que soletras na pele da minha mão fechada, no silêncio que é a tentativa de estar perto sem, de facto, estar. Lamento não saber fazer das coisas fáceis. Lembro-me do teu rosto e dos segredos que realmente me tocaram. Foi uma troca, amor. Uma troca de dias e de lugares, eu dei, tu deste, às vezes acho que demos tudo e ficamos sem nada. Amar-te foi talvez a escolha mais difícil. Ceder à tua vontade, aos teus momentos, à tua anarquia. Imprimir na minha ausência a necessidade de estar ligada. Chorar quando não podia. Fingir. Procurar-te nos sinais bizarros das ruas vazias. Sentir o teu contorno no meu quarto a meia luz. Viver com o teu cheiro misturado com o cheiro do mundo que ficou por conhecer. Amar-te foi também a escolha mais cruel. Prender-te. Prender-me. Permitir ao tempo duas vidas. Repetir os lugares, re-inventar as rotinas. Confiar de olhos vendados na promessa de qualquer coisa provisória. Estarmos juntos em vidas separadas. Chamar por ti num grito seco,dizer-te sem que me oiças. Viajar no vento, estar sempre de passagem. Olhar em frente e perceber. Perceber tudo. Perceber as coisas más, as decisões que nos mataram por dentro, a necessidade de mais soluções. Perceber o amor. A raiva. O sabor de um nó na garganta a travar-nos a voz. O assalto consentido de uma noite em que não ficaste para me ver dormir.
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You don’t understand me now,
I wonder if you ever will,
I wonder if you’ll ever try.
Don’t get sad about
All the strange things I wrote,
They faded as the ink dried…
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(D. Fonseca, I see the world through you)