27/12/2008

Cartas de Lisboa V

les tags. by *moumine
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Os lugares comuns que são memórias. Os olhos que não foram teus mas que conheceste, abrigados nas histórias de que ouviste falar. A sala das tristezas, o entrelaçar das linhas que formam novelos de solidão, o desejo de investir corpo a dentro do corpo que apertas contra ti, a vontade brusca de sentir, dividida com o tempo que te resta para fazer o mundo andar. É Natal e os destinos fazem-se por automatismo, com as tradições negligentes dos velhos. Olhar para trás custa, mudar custa demasiadamente mais. A frenética loucura de quem tenta dar sentido à consoada dos sem amor, mas que não consegue e volta ao ponto de partida com menos força, com menos mérito. Tomara que voltes depressa e me ensines de novo como se amam as pessoas versáteis. As vivências vão crescendo connosco e um dia é nelas que nos tornámos. Cinzentos, com a boca a saber a papéis de música e os casacos com o cheiro dos nossos avós. Já ninguém nos muda, tal é o pragmatismo de um destino assim, ditador da nossa forma de estar conforme a forma como vimos os nossos pais morrerem todos os natais. Cresce depressa, peço todos os dias ao filho que não trago dentro de mim. Impacientemente, eu sei que é dele que todos esperam para os tirar da vida vicciosa que foi uma vida sem vícios. Já nada dos contenta, já nada nos muda. O amor inventa-nos todos os dias e eles inventam segredos para o amor não lhes tocar. Quisera eu ganhar as pequenas guerras para nos salvar a todos de uma guerra travada descabidamente em silêncio. Quisera eu chamar as coisas pelos nomes, fugir no sentido proibido da vida, levar comigo apenas a idade em que tudo se define. Ao “tarde de mais” eu chamo de culpa, e à culpa eu chamo família.

01/12/2008

Cartas de Lisboa IV

by mrsunshine


As cicatrizes não doiem, dizes. A pele secou e cresceu por cima, nós arrancámos as crostas, houve todo um processo de fazer esquecer o que não se pode esquecer, choro ainda (às vezes), não sei se quero lembrar, não sei se quero esquecer. Por mais que perdoe, o tempo não esconde e eu tenho muito medo desta forma suspendida de levar a vida. Tudo é frágil, temporário. Tudo é a promessa de que nada é prometido; um dia acordas e não tens chão, um dia olhas pela janela e não tens motivos para querer sair, um dia voltas a casa e não tens chave para entrar. Coimbra é a garantia para quase nada, Lisboa um pacto assinado com a tristeza. Tudo está bem enquanto está bem. Tu não sabes do que falo e isso custa-me. Medes o valor das coisas com uma escala diferente e ensinar-te a ver as coisas como eu as sinto seria perder o pouco tempo que me resta. É talvez esta a trágica vantagem das coisas que nos acontecem sem que tenhamos culpa. O karma não explica e nem assim tu achas que podias ter feito melhor. Encolhes os ombros e no fundo apetece-te dizer que é natural que a vida gele nas minhas mãos cada vez que te vejo por dentro. Há um corvo todas as manhãs na minha janela, a tentar que eu acredite no destino. Eu penso apenas em probabilidades. Nas probabilidades das coisas acontecerem da forma oposta à forma que sempre predissemos. No fundo, sei que mentes. Sei que sempre mentiste e que nem deste conta. A validade dos teus sonhos é, simplesmente, mais curta que a minha. E disso ninguém tem culpa.
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26/11/2008

Ensaio sobre a Cegueira


Ficas com a certeza que as mulheres valem muito mais que os homens. Ficas com a impressão que irias até ao fim do mundo pela pessoa com quem queres partilhar a vida. Odeias os homens, odeias a anarquia, odeias o relativismo com que se decide que o bem comum vale mais do que o bem individual. Sentes, num espaço de minutos, o nojo que seria teres olhos quando mais ninguém tem, mas também o alívio de teres quem te siga e te corrija toda a merda que fazes. Não imaginas a dificuldade de achar normal que, no limiar da dignidade humana, sejas traída por quem deste absolutamente tudo.
Este filme é soberbamente decrépito, se é que tal coisa é possível. Senti raiva, desespero, ansiedade, admiração, alívio e medo, tudo numa enorme bola de metáforas a ultrapassarem todos os limites que o cinema tinha para mim. Lamentei particularmente a ideia de sacrifício voluntário em troca de coisa nenhuma. A capacidade das mulheres se entregarem tanto por tão pouco, sem que lhe possas chamar unicamente estupidez, amor genúino ou mesmo cegueira. Afinal de contas, não existe necessariamente um lugar para todos nós. Alguns têm de morrer porque estão a mais. Aleatoriamente. Sem justiça ou igualdade de oportunidades. E podemos perder ou ganhar apenas por sermos mulheres. Mas temos definitivamente mais a perder do que a ganhar.

20/11/2008

Cartas de Coimbra XIX


regards. by moumine



Ontem sai de casa ao cair da noite, com o sol ainda a desenhar-te no fundo da minha vida. Corri pelos passeios pintados de folhas amarelas, e não cai, nem tropecei, nem chorei, nem tão pouco tive medo. Soprei todo o ar que tinha nos pulmões, fiz voar as folhas, fiz de conta que podia tudo, naquele momento, quiça em todos os instantes que lhe precederam. Senti a tua falta mas não faz mal. Não passou de um lugar-comum, meu amor. E eu até trazia a tua música nos ouvidos – trazia-a apertada contra o coração, demasiadamente espantado de existir.
Ontem sai de casa ao cair da noite, de encontro marcado com as 6 milhões de formas de me fazeres sorrir. Por favor, é segredo e eu tenho a vida toda para te prometer um exclusivo. Há modéstias que não te acentam bem, e eu serei sempre o teu mistério. Promete-me, por favor, que serás perspicaz o suficiente para saberes o que não quero ser, nem aqui nem em lugar nenhum.
Hoje a minha verdade seria mentira há um ano atrás. E eu lamento que nos mintam e que nos obriguem a mentir também. Chamam-lhe ciclo. Eu chamo-lhe pena. Pena dos que suportam desilusões do tamanho das minhas, sem nada que eu possa inverter. O tempo não cura, o tempo só escreve por cima. Apesar do que nos dizem. Quem me dera que estivesses aqui. Não por mim, mas para que vejas, por ti próprio, a vida como eu a vejo. Aqui tudo faz muito mais sentido, porque as emoções nos levam ao limite da honestidade e nenhum de nós consegue passar sozinho por este lugar. Tudo custa muito mais, meu amor, e por isso mesmo, os sorrisos são maiores, os abraços mais fortes, as conversas sérias menos frequentes. Aqui fazemo-nos espelhos uns dos outros, aqui somos ombros amigos a qualquer hora do dia ou da noite, aqui as palavras valem muito pouco.
Ontem sai de casa ao cair da noite e aprovei cada segundo para te prometer que, no virar da semana, voltarei para ti como sempre faço.

10/11/2008

Oxalá...

Fui buscar a iniciativa à porta ao lado, Dança dos Erros. Uma fotografia. Um grupo musical. Dez respostas que sejam títulos de músicas do grupo escolhido. Façam também. Dá que pensar: as infinitas formas de falarmos sobre nós próprios, em linguagem musical, ou nem tão musical assim.

Madredeus. É a minha escolha. Dá-me respostas, não precisa de apresentação nem tradução. Não é tão pouco a minha forma preferida de música . Tenho momentos. Desdobramentos de mim que se lêm melhor à sombra de músicas assim.

A foto... bem, a foto deixo-a aos vossos olhos. Leiam-na à luz da música que se ouve hoje aqui.

1. És homem ou mulher?
E o que é que ficou da Lisboa antiga?
Eu não sei ainda
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2. Descreve-te:
Diz-me tu que eu nunca sei



3. O que as pessoas acham de ti?

A Barca da Fantasia

O meu sonho acaba tarde
Acordar é que eu não queria


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4. Como descreves o teu último relacionamento:

Antes de haver Manhã,
Há-de haver Madrugada


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5. Descreve o estado actual da tua relação com o teu namorado:

Adoro Lisboa
E as histórias que tem
E sei que há muita gente que adora também

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6. Onde querias estar agora?

Quando avistei ao longe o mar
ali fiquei
parada a olhar
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7. O que pensas a respeito do amor?
Eu sei quem és para mim
Haja o que houver
Espero por ti
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8. Como é a tua vida?
Carreiro Deserto,
Tão longe e tão perto
Anseio Secreto, encontro mais certo


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9. O que pedirias se pudesses ter só um desejo?

Vem

Sou como tu
da mesma Luz
do mesmo amar
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10. Escreve uma frase sábia:
Os pássaros quando morrem caem no céu




30/10/2008

Cartas de Coimbra XVIII




Um dia de cada vez, pedi a mim própria. Os dias maus vão dobrar a esquina e eu vou voltar a contar os dias como quem desfia nervosamente um novelo de lã. Sinto-me transparente, a atravessar multidões nos corredores gelados que são hoje as bibliotecas de cigarros apagados. Sinto o calafrio das correntes de ar a soprar pelas portas trancadas. A promessa de um crime que se fez corações a dentro. Os amigos que nos livram das noites mais frias e que ficam connosco no dobrar da meia noite. Os ditados que se espalham ao ouvido, no acompanhar dos acordes. A canção de Coimbra ensinada pela primeira vez aos caloiros. As nossas capas como a nossa primeira pele, o reconhecimento que vemos nos olhos dos que vivem estes dias ao nosso lado.

Foste tu que me ensinaste a viver dos outros e não de mim. E eu esgotei-me e aprendi contigo quanto vale um amigo. Do amor tirámos a nossa primeira lição de vida. De Coimbra a saudade de tudo o resto para lá de nós próprios. As pessoas surpreendem-nos, mas o amor já não. O amor repete-se a um filme francês sobre a infelicidade de me chamar Beatriz.

Falei de mais na noite em que tudo podia acontecer e nos momentos mais críticos certifiquei-me que era para ti que o que o tempo me arrastava. Choveu-nos em cima e nós brindámos à incoerência das nossas escolhas. Fui, afinal de contas, importante por um dia, indispensável por uma noite. Hoje, tudo isso foram miragens que a própria conta do vinho escondeu e eu olho e dou conta que não podia ser esta a vida que eu sempre quis. Convenceste-me, quase sem dares por isso, que o mundo poderia até ser um lugar melhor. Mas os meus melhores lugares nunca duraram para sempre. Agora sei, de fonte segura, que Coimbra não nos garante coisa nenhuma, apenas e talvez as melhores memórias da nossa vida, apenas e talvez os únicos amigos que alguma vez tivemos.
It's a small crime, And I've got no excuse...

21/10/2008

Cartas de Coimbra XVII

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Ainda bem/que o tempo passou/e o amor que acabou/não saiu ...
Ainda bem/que há um fado qualquer/que diz tudo o que vida/não diz ...
Ainda bem que Lisboa não é/a cidade perfeita/para nós ...
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Acordo todos os dias à espera que me surpreendas. Eu tinha grandes planos para naquele sábado voltar a casa e sentir-me querida por ti e por todos. Era o meu décimo-oitavo aniversário e eu estava à dois meses longe de casa. Achei que a festa surpresa era para mim, achei que ao bater da meia noite me ligarias, achei que teria uma noite sem a angústia de tudo estar longe. Foi apenas mais um dia, lembro-me. A única paz que me trouxeste foi aquele beijo onde te pedi para nunca mais me deixares, beijo este que levaste e com o qual tornaste todos os meus dias desde então um bocadinho piores a cada manhã.
Olhando para trás, chega a dar vontade de rir... eu realmente acreditei que teria uma festa surpresa para lá da porta de casa. Tolices que distância alimenta. Hoje sei que é na passividade e na discrição que a minha vida se encaixa.“Dezoito mais um” era o meu lema, para fazer de novo dezoito anos na semana que estava prestes a virar. Mas depois reparei que estavamos todos ocupados com o mundo pequenino e preverso que temos. Fazer anos a meio da semana tem dessas vantagens! A gente desculpa que não nos possam surpreender porque estamos longe. A gente desculpa que não se lembrem. A gente até que se descuida e chora um bocadinho quando ninguém está a olhar... Mas a gente habitua-se. Habitua-se a pouco. A quase nada. Eu, pessoalmente, já não espero sequer pelas tuas flores que me ficaram prometidas desde há tanto tempo. Já não espero que ligues. Já não espero que queiras ficar mais perto num dia como este, tão igual a todos os outros, quando, lá no fundo, eu só queria que por um dia pudesse ser importante. Dar nas vistas. Ouvir que fico bonita quando sorrio à chuva. Receber abraços, até de estranhos.


E o curioso é que também é de assinalar o 100º texto aqui publicado por mim. É bom que assim seja. Aqui eu sou importante, na ficção e no desejo de uma outra realidade, na transcrição do que fallhou, no tanto que ficou por dizer, quiçá de gritar.

09/10/2008

Registos Futuros de um imbecil

Stouf - Am I Alone, by Pee Ash



« Perguntaste-me o que diria hoje sobre Ela. Não é que importe, não é que alguma vez tenha importado... Ter-me-ia eventualmente perdoado tudo,teria lá estado, fizesse eu o que fizesse. Quando Ele morreu, a minha vida desmoronou também - coisas do acaso, digo a mim mesmo. E no entanto, sinto ainda a minha presença passiva enquanto Ela não chorava. Enquanto ela não chorava apesar do vazio que ficou quando tudo, literalmente, acabou. O caixão desceu à terra e eu vi-lhe nos olhos a luz a fugir. Ainda hoje desespero ao ver um amor assim. Foi há muito tempo, há demasiado tempo ... Ficou a ideia de que era ela que morria e ela quem enterravamos. Custou-me como se assim fosse - e aquele o cenário mais doente que vi até hoje. Ninguém devia perder aos 20 anos a própria velhice. Os sonhos de uma casa e de uma enorme família, o riso, o gosto pelas coisas, a melhor pessoa do mundo, a virtude de amar a certeza de uma vida a dois. Ao pé de tudo isto, todas as minhas escolhas não passaram de enormes asneiras.
Com o tempo, deixei de lhe ligar. Há mais de trinta anos que não oiço a sua voz traçada de álcool e tristeza. E, no entanto, todos estes anos carreguei a culpa de não ter impedido a minha melhor amiga de cair na solidão apática dos que negaram toda e qualquer prancha de salvação. Logo ela, a que menos merecia, a que soubera escolher e acertar à primeira. Logo ela, que reinventou mil formas de sobreviver ao destino. A que trabalhou, estudou e que, de alguma forma, tinha sempre tempo para ouvir o que eu não dizia. A que se arriscava porque se preocupava demais comigo. A que bebeu até cair no dia em que não lhe contei que namorava com a Teresa. A que se fez à estrada para estar ao meu lado quando a Teresa se foi embora. A que esteve sempre na sombra, conformada por eu ser um imbecil.
Lembro-me que era frágil. Lembro-me das vezes em que não aguentou e largou a chorar no meio do café. Chorava de cara voltada e de olhos fechados – como se assim conseguisse que eu não a visse chorar. E depois enxugava a lágrimas com a ponta da camisola, sorria para mim e dizia: “sou uma parva, desculpa”. Tantas vezes que a desculpei! E no entanto, quando ele morreu, não tremeu um bocadinho que fosse. Não falou sequer. O corpo dela estava hirto e gelado quando a abracei, mas nem com isso ela se comoveu. Estava morta por dentro, tive a certeza.»

06/10/2008

Cartas de Coimbra XVI

by Ptashka Ptashka


O que eu faria se não quisesse viver depois de amanhã. Decerto não esconderia o ciúme. Diria de que verdades são feitas as minhas convicções. Da boa verdade e da má verdade. Esforçar-me-ia para fazer sentir mal muita gente; viraria a cara a quem sempre me a virou, desmancharia em mil bocados este sistema ordinário de prepotências e importâncias, onde as vagas para sermos tratados como gente cedo e sempre se esgotaram. Se assim quisesse, juro pelo céu que voltaria atrás para dizer às pessoas o quanto as admiro. Talvez me desse ao luxo de me confessar nos olhos de todos os que enganei. Mas acima de tudo, não esconderia o ciúme. Viveria tão normalmente com o que sinto como se não me pudessem de forma alguma julgar. Como se não me pudessem afectar dentro ou fora da minha pele – tão simplesmente porque me decidira a não viver depois de amanhã.
Por um dia, andaria de corvo ao ombro, aprendendo com a pressa do tempo como vivem os piratas de alcatrão. Daria o corpo à ciência, assinaria todas as petições que me dessem a assinar. Iria à igreja uma última vez e pediria que me lessem de novo a parábola do filho pródigo. Conheceria Coimbra melhor, riscaria do mapa Lisboa e as canções que sobre Ela nos ensinaram. Beberia até cair. Sim... beberia até sentir que uma mulher tudo aguenta. Falaria alto, alto o bastante para saber que por uma vez me conseguia fazer ouvir. Votaria Jerónimo. Não por convicção, mas por ousadia. Voltaria a acusar-te de todo o sofrimento que trouxeste. De todos os dias difíceis, de todas as vontades inesperadas de chorar, de todas as noites em que voltei sozinha para casa apertando nas mãos uma solidão que não me pertencia.
E quando já não me apetecesse mais nada, deitar-me-ia cansada no teu abraço e esperaria um dia reencarnar na pele de umas perfeita autista.

11/09/2008

Cartas de Coimbra XV



É preciso não dançar o I will survive para alguma coisa estar obviamente mal. O calor da bebida ja passou, mas tivemos tempo suficiente para fazer os disparates de sempre e de ouvir o que não quisemos de forma nenhuma ouvir. A noite aconteceu e são ainda onze e meia e eu só queria duvidar menos sobre tudo o que aconteceu hoje aqui. Só queria chorar menos com as coisas bonitas que nos dizem nas luzes alternadas do escuro. Só queria não ter de ir agora para casa, despedindo-me com a promessa de estar tudo bem. Só queria que os segredos que escondem de nós não nos mantivessem tanto assim, na expectativa de um dia acordarmos e não sabermos a quem devemos perguntar pelo que aconteceu na noite passada.
É preciso que de repente a música já não soe para perceber que as oportunidades são cada vez menos e voltar atrás impossível. Desprevenida e injustamente impossível. Não há mais cerveja na mesa, o álcool não chega para nenhum de nós. De outra forma, ele teria falado mais e eu teria ouvido menos. E talvez hoje ainda valesse a pena esquecer as boas histórias que se partilharam com os amigos. The good times are killing me, disse-me uma vez. E eu repeti baixinho para que ninguém ouvisse a voz que me vinha de dentro e me gritava por raiva. Bem vinda a Coimbra, pensei. Fechei a porta e dessa noite não restou sequer a ressaca. Apenas multidões de perguntas sobre o onde, o quando e o porquê de todas as coisas que nos foram acontencendo como consequências das nossas melhores intenções.

18/08/2008

Cartas de Lisboa III

Divorce, by Bogac Erguvenc


Às vezes acho que sei qual é afinal o teu segredo. Estás bem porque te conformas. E a felicidade, dizem, não é afinal apenas dos tontos, mas principalmente dos que se conformam.

Eu estava bem, há muito tempo atrás. Sem ti e, por sinal, sem ele também. Conformada com as coisas pequenas, com os detalhes bonitos que só existiam no vagar de quem se sente sozinho. Voltei a Alcains, desta vez para te enganar. E depois dei conta que me enganava eu por ti e senti-me transparente. Achei-me tal uma coisa bem simples de se perceber. Só queria que reparassem em mim. Que cada pergunta e cada resposta tivesse retorno. Que cada sorriso se convertesse na certeza de nunca ser deixada para trás. Só queria ser importante para ele e, eventualmente, para ti. Ter crescido noutro sentido, com as responsabilidade nas mãos e não às costas. Só queria ter-me chegado à vida pondo um pé à frente do outro, ouvindo o que toda a gente gosta de ouvir, num caminho com muitas portas. Num caminho que me desse tempo para viver cada alternativa. E sim, eu sei. Cada escolha abdicará sempre de uma outra escolha e em vida alguma poderia ter vivido as duas. Mas, olhando para trás, só queria realmente ter pensado melhor, falado mais, questionado sempre, para que hoje, eventualmente, tu fosses embora e eu não me importasse com isso.

28/07/2008

Cartas de Lisboa II




Love is not a victory march.
It’s a cold and it’s a broken Hallelujah.
(L.Cohen)


Decerto concordas. O amor não será mais do que o alinhamento da minha vida com a tua, neste pedaço de tempo e de chão. Temporariamente propício. Até porque seria preciso muito mais do que me teres à tua cabeceira, com os teus fios de cabelo entre os meus dedos das mãos. Até porque um dia, hoje mesmo talvez, tu vens e dizes que o amor não é suficiente e que por isso temos de o descartar e deixar ir embora. E eu devo aceitar, rever o meu tempo perdido e as minhas forças perdidas, seguir com a minha vida e, da noite para o dia, aprender a viver com isso.
E depois revejo-me, à tua cabeceira, com os teus fios de cabelo entre os meus dedos das mãos. E vou lembrar que não houve retorno. Vou lembrar que dar sem receber é para os tontos. E eu não sou assim. Mas hei-de lembrar-me sempre que não houve retorno. Não houve retorno, nem há. E por isso, às vezes, apetece-me também a mim descobrir que o amor não é suficiente. Tal uma troca em que o prejuízo não compensa, por mais gosto que se tenha no que se faz. E eu nem isso tenho.
Tenho muita pena que tenha de ser assim. Mas depois olho e percebo que haverá sempre alguém na eminência de se ir embora. E do outro lado, uma segunda metada que sobrará sempre no destino das próprias escolhas. Eu fico e tu vais. Por sistema. E às vezes eu só queria ter amor próprio para te deixar. Para te provar que em esquina alguma encontras mulher que te ame tanto, por tão pouco. Ou talvez me contentasse se lutasses para me teres à tua cabeceira. Se para ti as coisas não fossem assim, tão conformadamente fáceis. Se as coisas para ti não fossem certas – porque, se olhares bem, coisa alguma é certa, muito menos para ti.
Eficazmente, nada disto importa. Toda a tua vida será uma corda bamba, e a minha também. Faz o que tens fazer, dir-te-ei. Faz o que tens a fazer, todos os dias da tua vida, até ao dia em que te fores embora de vez. E depois disso, talvez nada mais aconteça.

10/07/2008

Cartas de Coimbra XIV



É a simplicidade e linearidade desta música que me falam todos os dias de ti. A vontade a queimar a impotência de não podermos voltar atrás. A solidão que sentimos quando o nosso quarto ficou vazio outra vez. As mãos que nos tremeram quando aquele abraço não aconteceu.
As flores. As flores que murcharam, não importa o que tentámos fazer por elas. O sistema de promessas que guardámos no fundo do bolso das calças. As palavras atiradas. As palavras que não ouvimos, as que não dissemos. O som do piano. O dedilhar de um teclado de um computador. De um computador num sítio qualquer onde reunimos o que sobrou de nós. O vento, as conversas alheias que nos chegam entre os transtornos da vida dos outros. As pessoas infelizes a partilharem connosco o comboio. Quem queriamos ter sido e não queremos mais. O destino das cartas de amor que escreveste mas que nunca enviaste. Ou que enviaste e pediste de volta. Tudo, meu amor, tudo... Tudo o que te acontece e me acontece a mim também, e que me leva de volta ao dia em que tudo o que tinha caiu ao chão. Ao dia em que dormir custou menos, acordar custou mais. Porque tudo é fácil quando, vendo bem, não é assim tão importante. Quando, vendo melhor, só custa se alguma vez acreditares que vai durar para sempre. Ou que vai durar tempo suficiente para que no próximo Natal ainda lá estejas – como prometeste que estarias e não estiveste. Mas sim, só custa se for realmente importante. E hoje só preciso de acreditar que sempre que te procurar, te vou encontrar. Te vou encontrar a tocar para mim, na volta dos acordes que nem tu sabes, mas que nos sonhos existem. Mas que apenas nos sonhos existem.

04/07/2008

Cartas de Coimbra XIII


Às vezes parece que é só uma questão de tempo. Eu pensei que estava a fazer as coisas bem, mas tu vens e dizes que não, que nós nunca mudámos. Que nós nunca crescemos. Que nós ficámos apenas dependurados na verdade insastifeita sobre o que nunca seríamos. Nesta forma de estar, compassada com a música, retardada com os dias em que eu não voltei nem hei-de voltar. Com os dias em que eu não hei-de voltar porque preciso que estes deixem de ser os melhores dias da nossa vida.

E depois... depois, aqui a vida parou. Aqui, sem que seja preciso que nos digam seja o que for, tornámo-nos cumplíces de gente como nós. De gente que se traiu e que quer confiar outra vez. De gente que não quer ter de ser feliz outra vez, que tropeçou na prórpia vida vezes sem conta, que precisou de um abraço mais do que qualquer outra coisa na vida. E nós, nós estávamos lá a precisar do mesmo abraço, do mesmo abraço descomprometido. E nós estávamos lá, à espera do mesmo sorriso molhado das mesmas mágoas. À espera da mesma meia metade que quisemos ser um para o outro.
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Mas tu vens e dizes que não. E num estalar de dedos, tudo desaparece. A cumplicidade, a nossa nudez completa entrelaçada na vontade que partilhámos para que tudo fosse assim para sempre. E com a manhã a nascer nas nossas janelas, morre tudo com a calma com que encaro a falta que me fazes.

E hoje, hoje faço planos de me ir embora, de me acostumar à impessoalidade que preciso do mundo. De me acostumar a uma vida de contratos: sujeitar-me a troco de dias fáceis. E quando for, meu amor... quando for, farei de conta que deixo para trás apenas quatro paredes e uma última carta de amor na tua almofada. Farei de conta que os melhores dias da nossa vida nunca aconteceram. E que, no fim de contas, nós mudámos e nós crescemos e nós decidimos que seria tudo uma questão do tempo. E então eu decidi também que me devia ir embora.



20/06/2008

Cartas de Coimbra XII

Easy To Please - Coldplay


Esta é a única maneira de estar perto. Esta é a única forma de as coisas continuarem a existir na metafísica que é a distância entre nós. Eu dizer-te neste jeito – que é o único que tenho – que vejo a vida no significado das janelas entreabertas a pedirem-me que espreite e que continue a querer que tudo isto resulte. Tudo isto que somos tu e eu, e o silêncio que já não doi porque a vida nos enche, e os sentimentos que já não doiem porque crescemos e porque perder já não custa tanto assim.
Esta é a única forma de continuarmos lado a lado. Quando eu sigo a minha vida e tu segues a tua, entrelaçadas nas pausas do tempo. Este é o único meio de te falar. O único sítio para te abraçar. Estas são as músicas que te denunciam nos meus dias. As músicas que gritam o teu nome enquanto subo e desço Coimbra. Esta a melhor forma de passar pelos dias. Escrevendo-te. Dizendo-te tudo isto, que não preciso que oiças – que preciso apenas de te dizer.
E, sim, o destino traçado de forma imprevisível, sem que te possa prever o que vai ser de nós com o tempo a rasar a nossa vida. Com o tempo a amarfanhar a importância que demos às coisas de antigamente – sem já importância nenhuma, apesar de tudo. E, sim, meu amor, sim. Esta é realmente a única forma de estar que tenho. A única forma de expressão, por menos valor que dês às palavras traçadas assim, tão longes. Por mais silêncios que não faço nem sou capaz, mas que talvez preferisses.
Meu amor, a única forma de fazer magia que tenho – levar para aí, para onde quer que estiveres, uma última palavra de afecto que tenha aprendido com a minha vida sem ti. Uma última morada de sonhos onde sei que nunca vamos poder habitar – mas que hoje ainda somos capazes de criar de mãos dadas.
Love; I hope we get old,
I hope we can find a way of seeing it all.
Love; I hope we can be
I hope I can find a way of letting you see
That Im so easy to please, so easy.
Love; I hope we grow old,
I hope we can find a way of seeing it all.
Love; I hope we can be
I hope I can find a way of letting you see
That Im so easy to please, so easy.
(Easy to Please, Coldplay)

12/06/2008

Cartas de Coimbra XI


Coimbra não tem o Pôr-do-sol no horizonte. Coimbra não tem caminhos a direito. Coimbra traz o pôr do sol no rosto das pessoas a quem damos as mãos. O pôr do sol no recorte das árvores e das casas. Coimbra tem caminhos que nos fazem subir e ser feliz no cansaço dos fins de tarde. Coimbra, na sombra do que sempre quisemos ser e hoje, uma quimera perdida nas madrugadas turbulentas de um forma de estar que não a tua, mas a minha. Mas a minha mão estendida a pedir-te que lhe pegues e não a largues nunca, nunca mais. Mas a minha voz calada a pedir-te que toques para mim.
Gosto de estar aqui, sabes? De beber o vento como quem recorda o sabor de te ter comigo. Como quem volta atrás e tenta ver as coisas como as via antigamente: o contorno preto sobre os sonhos cor-de-rosa. E o pôr-do-sol que sobra dos olhares rápidos dos estudantes que passam. O instinto a revelar-nos que haverá sempre uma má desculpa para fingirmos que está tudo bem. O instinto a ganhar terreno e ainda agora a dizer-me ao ouvido que vai correr tudo bem. E que comigo não havia de ser diferente e que por isso crescemos e as coisas mudam para nós, tornam-se melhores mas mais pesadas, mais doces e mais amargas, tudo complica mas fica mais simples de fazer – faz-se pior, mas faz-se. Perde-se o brio nas coisas em que somos bons, mas continuamos a ter o vento a bater-nos na cara e o pôr-do-sol a encher-nos o ego. Quando, no fim de tudo, nós só queriamos que o sofrimento tivesse valido a pena.

26/05/2008

Cartas de Coimbra X




Olha, sabes que mais? Há partes do que sou que nunca vais querer entender. A cor do ritmo brasileiro, as vozes que coloriam a rádio quando eu era nova. A nostalgia que fica quando não ouvíamos as músicas da nossa vida há tanto tempo. A vontade louca de dançar à chuva e de te puxar para rires comigo do mundo. A Daniela, a nobreza da leveza de espírito, o querer-me tão capaz de voar. A simplicidade quase ridícula das letras. Uma realidade tão assim, tão diferente. A vontade dormente de uma liberdade de gestos incomparável com o que tivemos até agora. Consegues imaginar?

Tenho uma saudade imensa de dançar. De dançar com os cabelos soltos, no meio da rua, de dançar como quem deixa a vida rolar ao sabor dos dias. Sacudir estrelas, sorrir e mexer com quem passa, rodar uma saia de braços abertos e, sem dar conta, tudo já ter valido a pena por este nosso momento de insaniedade. Ser atrevida! Possuir nas mãos e no corpo todo o olhar de um homem apaixonado. As nuvens a soprar em nós uma forma de vida que nunca antes nos tinha sabido tão bem.

Suponho que não, que não consegues imaginar tal coisa. Mas acho que não faz mal assim.







Música - Bandeira Flor, Daneiela Marcury

22/05/2008

Cartas de Lisboa I

Gabriel - Lamb

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Tens-me como um mundo onde a felicidade não tem contornos, uma quinta dimensão em alternativa a tudo o resto. Qualquer coisa certa na tua vida. Demasiado certa. Mas depois preciso que me deixes entrar no Teu Mundo e quando o fazes, Ele engole-me e tu não reparas em quase nada. Com honestidade, meu amor, e sem paz podre, deixa-me que te corrija: para ti não sou Beatriz, sou a tua namorada. Para ti, espero se entender esperar, mas não te habitues. Para ti, amor, eu vou tendo limites e depois disto, esforça-te mais porque as minhas alternativas hoje são muitas. Para ti, amor, tenho muito mau feitio e estou bem assim.
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Tudo isto para te dizer que podiámos ser tudo, mas primeiro teríamos de falar. Tudo isto para te pedir que espalhes ao vento que me amas. Que respires o meu nome. Que me digas se algum dia vais conseguir tornar tudo isto qualquer coisa que não uma paixão de fim de semana. Se algum dia me vais dar uma flor que seja. Escrever um poema sem rima, o desespero de um acto romântico; a falácia que é jurar a eternidade de coisa nenhuma, só para que a nossa vida não se esgote de magia – da verdadeira magia, daquela que ninguém domina.
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Tudo isto, amor. Tudo isto para te pedir um sinal todos os dias. Tudo isto para que as coisas sejam fáceis. Tudo isto para que as diferenças... tudo isto para que as diferenças, o tempo, a chuva, a distância e os amigos, o frio, a música, os projectos, as minhas e as nossas crenças, o teu vagar...Tudo isto para que nada nos afaste, com a simplicidade de um estalar de dedos.

Para Partilhar

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Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola
Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade
Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência
Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro
Penteiam-nos os crâneos ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós
Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra para o medo
Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
sonhos vazios, despovoados
de personagens de assombro...
Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco
Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura
Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante
Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino
Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte

15/05/2008

Desafio...

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Há um Piano sempre à tua espera
(parado no tempo mas a seguir-te na vida).
(por Luís B.R.)

Este texto é a resposta a um desafio lançado pela Vanessa do blog a Dança dos Erros. São-nos pedidas seis palavras (uma frase pequenina, minúscula mesmo...) para uma muito curta biografia (há quem opte por um conceito) e podemos dar-lhes ênfase com uma imagem. Devemos colocar um link para quem nos desafiou e por nossa vez desafiar cinco blogs, avisando-os deste mesmo convite.

A minha curta biografia... podia ter escolhido um daqueles recortes de autor que nos enchem a alma, mas depois achei que nenhum deles seria suficiente. Achei que diria muito pouco. Então vai na volta e descobri esta frase e nela uma metáfora adequada, e nela um desejo secreto de alguém na nossa sombra a tocar para nós. Eu nunca soube tocar piano... mas sinto-me como se soubesse. A música... bem, a música acho que a escolhi porque sim.


Desafio a participar os seguintes bloggers:
Pedro Pinto – H(A) espera
Conteúdo Latente - Conteúdo Manifesto
Inês - c'etait une histoire d'amour
Filipa - Trompe l'oeil
Ana Sofia Cavadas - (Zero Absoluto)

07/05/2008

Cartas de Coimbra IX



Meu amor, esta é a vida que trouxe ao colo durante todos estes anos e que hoje é a própria Coimbra a quem todos nós nos rendemos. A intensidade da revolta, a intensidade das canções, a intensidade da sobrevivência. O que entendo hoje sobre o valor de ser estudante nesta cidade é muito mais do que palavras – na maior parte das vezes, canções. Não acredito que em parte alguma exista tamanho sentimento como o que envolve estas capas e batinas, este orgulho tão devidamente arrogante, esta nostalgia, esta paixão tão sujeita ao vagar dos dias, um Mondego assim, a eternidade das baladas e dos afectos, a intemporalidade das músicas de intervenção, o rigor e a tradição de mãos dadas. Um sofrimento assim que se adia com goles de traçadinho e de amizade.
E sabes, meu amor, tu estás nos interstícios desta vida, nos acordes de cada guitarra. Estás nos rostos de todos os homens que nos saudam na mansidão das madrugadas. Estás no calor aconchegante de uma capa traçada no regresso a casa. Estás nas vozes de fundo quando Coimbra inteira lança as capas ao ar e sonha em conjunto. Estás, acima de tudo, no entendimento que tenho hoje das coisas e da complexidade das coisas, tornando-se tudo, a pouco e pouco, cada vez mais simples. Porque tudo, meu amor, tudo passa, e estes dias passam por nós como que a juventude a revestir-nos a pele e a tornar-se memória. E sem darmos conta, a vida aconteceu-nos, quase por acaso...


14/04/2008

Cartas de Coimbra VIII


Foda-se. Voltamos à estaca zero. À corrida indeterminada para uma latitude que apenas me espera a horas certas, mas que não me deseja de improviso. Não vou ser tua por meia hora, amor. Não me vou deitar contigo como quem pica o ponto e depois vai embora pela porta das traseiras. Não vou ser infeliz de novo para que tu não tenhas preocupações e estejas bem contigo e com o teu ego. Desculpa-me amor, mas se tiver que ser, voltamos à estaca zero e eu não vou ser tua por meia hora. Sobrevivi a uma, sobrevivo a duas, mas não vai haver terceira. Há desejos que não valem mesmo a pena. E, vendo bem, há amores que não duram para sempre, e que não perdoam tudo. Que se foda tudo o que disse. Homens, não há assim tantos, mas antes sozinha do que apenas oficiosamente sozinha. Amo-te como ainda não tivemos coragem de dizer um ao outro. E estas cartas que me sirvam ao menos para isso. Para te lembrar que as coisas não começaram entre os teus lençóis de flanela. Para te lembrar que, tarde ou cedo, um de nós se magoa e vamos precisar de falar – e, desculpa-me, mas depois de tudo, antes tu que eu.
A história das nossas vidas. A música a ecoar-me aos ouvidos enquanto atravesso Coimbra. As árvores, a chuva torrencial, as sensações, os cafés a fumegar das mãos dos amigos de ocasião. Talvez, afinal de contas, apenas a história da minha vida, sem ti. E não, amor, não voltámos à estaca zero. Por mais medo que me tenha dado quando me atiraste isso a cara. Hoje vou ser eu que me vou fartar e levo já o discurso ensaiado – como levo sempre, mas esqueço sempre. O amor é para os parvos e a mim falta-me apenas descobrir se sou parva que chegue para resistir-te. Se te perguntarem por mim, diz que voei – foi esta a ideia desde o início. Estares comigo, sem que ninguém notasse. Sem que eu notasse. Apenas as tuas mãos e a tua boca, mas não a tua voz, a tua presença concentrada no que eu realmente precisei.
O bom de te contar isto é que não precisei de chorar.

05/04/2008

(In)Decisão

Elisa, por Pascal Renoux


Se eu pudesse abrir os olhos, veria que não fomos feitos um para o outro. Veria que dificilmente haverá alguém que me sirva tão perfeitamente como tu me serves. Veria que agora é tarde ou cedo para sermos felizes para sempre e se não for assim, desculpa meu amor, mas então não fomos feitos para estarmos juntos. Desculpa me amor, mas se decidires por mim, não decidas pelo que fomos. Decide se ainda é justo tudo isto, decide se ainda é justo pedires-me o tempo de uma vida inteira, mas não o decidas pelo que fomos. Sabes que estarás sempre nas entre-linhas do meu dia e da minha noite também, mas hoje sou mais feliz sem que estejas aqui ao meu lado.

Se eu pudesse abrir os olhos, veria o homem imperfeito que te tornaste e talvez por isso te amasse mais ainda. Veria que já não seguimos de mãos dadas à procura de um mesmo enquadramento. Já não estamos convictos que as direcções erradas nos hão-de levar ao mesmo destino, escolhido e desenhado por nós. Agora, mesmo de olhos fechados, eu sei que voltámos ao ponto de partida: à música a segredar-nos ao ouvido a história de amor que não tivemos, à música a embalar esta forma de estar que não quisemos. Meu amor, se eu pudesse abrir os olhos, amar-te-ia um bocadinho menos e assim tudo seria bem mais fácil para os dois. Apagaria o teu número de telefone, esqueceria os detalhes que nos juntaram, daria menos importância aos acasos que te afastaram. Meu amor, se eu conseguisse ao menos abrir os olhos!

Hoje eu sei que já decidiste. Como decidiste da primeira vez. Pelo meu bem, sem que eu te pedisse coisa alguma. Hoje sei que já decidiste, e sei que eu decidi também. Eu decidi adiar o tempo. Decidi matar memórias, decidi que não ia chorar quando me olhasses nos olhos e me dissesses que é melhor assim. Hoje eu decidi que não vou voltar nunca mais a esta cidade onde te perdi, onde desapareceste sem que eu desse conta. Decidi que seria feliz sem ti. E que lamentaria todos os dias que assim fosse.

17/03/2008

Cartas de Coimbra VII


por Marzena Gregier


Um mundo a meio. Uma meia laranja sem brinde, um meio ano por perfazer um sonho onde estou só por metade. Eis que foi assim que voltei a Lisboa. Que foi assim que voltei à contagem crescente dos anos que teremos de esperar para tentarmos de novo. Para tentarmos de novo ser felizes, e não apenas felizes por metade. Tão simples quanto isso. Tão banal. A muralha de Lisboa que me fez sombra tantas vezes... O recorte do castelo, a minha eterna varanda para uma lua cheia que não vejo desde há tanto tempo. O Tejo, as festas, as ruas, o Fado, os amigos. O tempo. Tão absurdamente banal quanto o tempo e todos essas recordações indevidas para quem foi viver para longe. E hoje eu digo, de costas para o Mondego, que não quero voltar a Lisboa. Que, mal por mal, que me esqueça dela. Que me esqueça do bairrismo, da tempestade de gente a viver Lisboa todos os dias em hora de ponta; que me esqueça que todos os caminhos vão dar ao prenúncio de uma ausência. Que todos os caminhos já são saudade ainda antes de os completarmos. E hoje eu digo, bem de frente para a fachada da velha faculdade, que não deveria ter sido assim; mas, não havendo escolha, que o resto se faça a correr. Que os amores ganhem vida depressa, que eu me canse deles, que eles passem por nós como se nunca tivessem acontecido. E hoje, apesar de dizer tudo isto, volto a Lisboa. Volto ao largo Camões, à primeira manifestação que partilhei contigo; volto ao Carmo, volto aos miradouros a quem escrevi tantas cartas de indecisão, volto aos promontórios de escadas, às nossas inesquecíveis tardes de chuva. Volto ao Chiado, volto aos jardins onde escondemos tantos segredos, volto aos museus, aos autocarros que nunca tiveram destino. Volto às castanhas quentinhas, ao mar de gente que fala e sente coisas que eu não entendo. Volto à minha infância, aos velhos rostos que se perderam com a prepotência dos acasos.

06/03/2008

Cartas de Coimbra VI

por Inês Sacadura

Há filmes que te fazem rever por dentro e por fora. De vários ângulos, um por um, todos em simultâneo, num rastreio interminável que julgas vir um dia a culminar numa visão mais sensata da realidade que és. Mas nunca vai ser assim. E tu me dirás que não e sacudirás a cabeça como se desaprovasses tudo no que me tornei hoje.

Foi na paragem de autocarro que ele me disse. Disse-me que me levava a casa. Que me levava a casa porque tu nunca o perdoarias se alguma coisa me acontecesse. E isso fez click na minha cabeça, sabes? Não te sei dizer de que forma. Mas o que eu mais queria naquele instante era tão somente que ele não tivesse dito aquilo. E que não se tivesse rido depois, e que não me tivesse visto chorar, e que não me tivesse levado a casa como prometeu. E que a minha história fosse outra, outra qualquer sem margens de engano, sem que eu pudesse duvidar da autenticidade das coisas.

E a minha verdade não pode realmente ser apenas mais uma. A saudade que ainda sobra dos dias porque não me encaixo neste paralelo como me encaixava em ti. A demora das coisas em acontecerem e todos os dias o teu nome soar com menos raiva, com mais distância. A confiança que não tenho ainda para dar a ninguém mas que, por evazivas, vou-lhe dando, tão cega e tão desperta quanto só tu me sabes ser. Um duplo nó na garganta a endurecer em dias
em que te escrevo porque não tenho escolha.

E há filmes que te fazem rever por dentro e por fora. Sem que isso mude coisa alguma.
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O filme... Awake. Mas só para alguns de entre nós.

07/02/2008

Cartas de Coimbra V


E trocadas as voltas, sou muito mais pequena do que supus. Somos todos. Jamais da integridade que acreditámos ser, jamais da coragem que pensámos ter. E trocadas as voltas, cada vez que te sujeitas a voar, cada vez que sonhas, cada vez que te vês lá no alto onde não estás, o mundo tropeça-te nos pés e mais pequena te tornas. E mais ninguém ter tornas. E menos sabes, e menos entendes, e mais medo somas, e mais consciência tens do que perdeste com o tempo que consumiste a sonhar. E mais pequena és.

E trocadas as voltas, as aparências iludem. E tu iludes-te com o reflexo espelhado que tens de uma estranha história a minguar-te nas mãos. Lá no fundo tu só querias ter visto o nascer do sol com ele ao teu lado. Tu só querias ter fugido com ele para um fim do mundo onde ninguém vos pudesse encontrar. Tu só querias ter recebido flores, ao menos no teu dia de anos. Que te tivessem feito uma surpresa que fosse, e percebido que precisavas deles. Que precisavas de ti e que não te tinhas. Tu só querias ter sido outra a quem as coisas não pesassem tanto. Outra que ele não tivesse tido de deixar e que hoje ainda iria acordar a meio da noite e aperta-lo contra si. Outra. Tu só querias que as tuas mãos não gelassem cada vez que, para não chorares, tivesses de escrever. Que para conservares o ritmo te adiasses por tempo indeterminado. Lá no fundo, tu só querias ter sido feliz. Tu só querias ter sido feliz à tua maneira resguardada de esperares por um rasgo de sorte para embarcares na vida. Mas o teu rasgo de sorte não veio ainda e tu sentas-te de pernas cruzadas à espera do destino. Consta que ele há-de chegar quando menos esperares e que aí talvez te conformes e sejas feliz assim.

28/01/2008

Cartas de Coimbra IV

by Steffen Ebert


Depois da noite de ontem eu soube que o que se esgota por falta de vontade não se repõe nunca mais. Ou assim deve ser. A cerveja há de nos servir de alento nas noites mais frias, Coimbra terá pretensões de substituir o que não tem volta e nós dois seremos exactamente aquilo que nos tornámos, contra todas as formas que tens de te resguardares do que queres tentar e pensas que não deves. Sabes bem que foste feito para isto. Que o chão que pisas não é mais o chão que queres pisar. E quem se farta por fartar e quem se farta porque querer conhecer pessoas novas não merece nada mais, disseram-me, e isso eu não te perdouo, por que não o confessas e me mentes como, agora eu sei, sempre mentiste.

No destrocar dos pares, esta noite não fui tua, mas apenas minha – I didn’t lose my mind, It was mine to give away , tal como nos dizia a música. Esta noite brindei ao que sempre te disse, que um dia me deixarias, que partirias por estar cansado de mim e dos meus silêncios. Mas depois estou sóbria de novo e lembro-me que eram os teus silêncios, e não os meus, e que eram as tuas distancias, e não as minhas, que nos matavam todos os dias. Não era a minha insegurança, era a segurança que não tinhas para me dar, apesar de todas essas palavras esgotadas que disseste enfim, quando já não havia mais nada a fazer por nós. E eu, meu amor, eu sempre soube que seria bem mais fácil para mim assim. Mas quem corre por gosto não deveria cansar e aceitei-te tudo porque o amor é para os parvos – e eu não fui nada mais que uma parva.
Pelo menos agora o destino segue o rumo que se ocasionou que seguisse, sem já quase nada que me prenda aos dias que deixei para trás, onde ficaram os primeiros grandes amores da nossa vida fácil. Agora preciso de um primeiro amor difícil. Um daqueles, moderado o bastante para entender com que linhas se cose uma relação – preparado para que nem tudo se faça dos jardins, e das noites e tardes imensas daquele mês de setembro, para que nem tudo sejam manhãs intermináveis do amor de lençóis que construímos, do amor de Verão que não quisemos.

22/01/2008

"my own springtime"

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Olá a todos. Estive ausente e no entanto sempre aqui. Estive ausente e no entanto com as mãos sobre a teclas e a necessidade sobre as palavras. Estive ausente e sempre soube que um dia acabaria por voltar. Triste, claro está, mas sim, eu um dia acabaria por voltar. Depois de arrumar a minha vida, de encaixotar metade do passado, de arrefecer os ódios – e as paixões interditas também.
Desde então que aprendo todos os dias como se vive sozinha. Aprendo como se perde. Como se perde o melhor que se tinha e como se recomeça aparentemente com quase nada. E os recomeços não são fáceis, concordarão comigo. Os recomeços precisam que acertes o compasso com as novas pessoas com quem vais ter de viver de agora em diante. Os recomeços precisam que fiques feliz com as conquistas pequenas, com os gestos miúdos, com a presença mesmo que calada dos amigos que te sobram e dos que, aos poucos, vão confiando em ti.
No fim de tudo, sabes enfim que estiveste este tempo todo sozinha. E que não vais querer voltar a casa nunca mais, porque Lisboa, ou esse sítio de onde vieste, se revestiu de tristeza com tudo o que lá deixaste – ou com tudo o que lá perdeste. Não vais voltar porque a luz se apagou, porque aquela chama pequenina cá dentro, de tanto tremer, se apagou. Não vais voltar porque agora o simbolismo das coisas é outro. Não vais porque lá ficou talvez a melhor pessoa do mundo e com ela todas as noites no jardim e todos os beijos e todo um amor que parecia inesgotável.

Este blog foi feito em nome de alguém que sempre o mereceu até ao dia em que não soube explicar porque me deixava quando eu mais precisava dele. Até ao dia em que não soube dizer porque me deixava quando eu mais precisava de alguém. Desde o inicio, era o nome dele nos contornos de todas as dúvidas, de todos os dissabores, de todas as alegrias, que exprimi sempre com tanto medo para que não fossem efémeras. Mas agora tudo isso me morreu nas mãos, sobre as teclas, na distância que me faz detestar Lisboa e a saudade que ela deixou de trazer. Dá vontade de acreditar que todo este blog foi em vão. Os caprichos de uma poesia triste que chorava uma história de amor ainda mais triste. Não me quero lembrar do quanto fui feliz com ele, porque as vezes dou por mim a pensar que fora melhor não o ter conhecido. Não, não... a minha vida não era só ele. A minha vida continua a multiplicar destinos e a tentar existir no meio das outras. Mas a melhor pessoa do mundo cruzou-se comigo e disse que me amava. E depois tornamo-nos amantes incompatíveis sem paciência para a distancia ou para a vulnerabilidade dos destinos que se adiam. Mas, prometo-te, eu um dia hei-de ser feliz outra vez.
Com alguém que me ofereça flores.