27/01/2007

[young girl in blanket]

Tenho pena que sejamos dois a volta de um mesmo dilema. Os corpos que se entregam, as almas que vão ficando para trás, os temas sempre mal discutidos, os afectos inadvertidamente mal estudados. As vidas, que por acaso até são nossas, todas elas em suspenso, como quem espera por uma espera sem final aparente, perseguindo a felicidade nas causas certas pelos motivos errados. Temos todos as mãos frias e doem-nos as costas: o pensamento fica cada vez mais pesado, e existe um vulcão de insatisfação dentro de nós dois a exigir que sejamos senhores das nossas vidas outra vez, tal como quando não tínhamos aparecido ainda aos olhos do mundo e éramos ninguém. Desculpa se te passei a frente e não te guardei lugar. Não penso em ti a cada instante. Penso nele. Porque sei que não posso olhar para ti como tendo a olhar, nem partilhar contigo o bocadinho de insuficiência que sou. Tal seria amar-te como eu nunca disse que te amava nem amo. Tal seria responder à incondicionalidade do que sinto, não importa quantos homens, nem quantas mulheres existam no mundo. Tu és especial. Bastante. Mas mesmo assim, tantas vezes não me chegas e eu procuro-te nos lugares onde te procurei tantas vezes antes de te achar. E encontro o calor que é dele, a mão quente e aberta que encaixa na minha alma gelada, como em tantas outras almas que lhe serviram como eu lhe sirvo agora.E só o lamento quando tudo em ti é afinal feito à medida do meu entendimento.



Imagem d Alexei Antonov

23/01/2007




"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...


A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.


Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...


Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...


Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.


Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...


Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!


Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.


Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou

Não sei para onde vou,


Sei que não vou por aí.





(Cântigo Negro, José Régio)

19/01/2007


No universo que recolho de ti em partes dispersas, do que foste e que hoje tornas a ser, no limiar do que os entretantos pediram que fosses. Tal o copo vazio que tantas vezes encheste para que eu acreditasse que a vida seria sempre assim, doce como tu me fazias crer que era. E as pétalas ameaçaram cair; o frio ameaçou-nos com as investidas de solidão, o medo de cair paralisou o tempo, e o Tempo o intervalo entre o tempo de te sentir perto e o tempo de te prever finalmente distante.
Seria capaz de me sentar enfim num degrau de porta e esperar por ti eternamente. Porque hoje de repente consigo acreditar que voltarás para me buscar. Que um dia então me levantarás o rosto, varrer-me-ás as olheiras, segredar-me-ás ao ouvido o som das palavras que procuro ouvir sem ter que entende-las. Desenharás no pó do chão o reflexo de todas as coisas de que sorrimos, de todos os estranhos a quem seguimos os passos e a quem descobrimos os manifestos de solidão por opção. Serás o riso genuíno que descortinarei por engano numa qualquer gaveta da memória, talvez o teu, e se não o teu, talvez o meu: mas certamente um dos tantos risos que ouvimos e demos enquanto dispúnhamos de um copo cheio de tudo e de um corpo prestes a dar-se. E hoje talvez tenhamos dado já o corpo e entornado o nosso copo; talvez tenhamos bebido a meias, esvaziado a sede de tantas coisas maiores, esperado demais. E hoje ainda somos demasiado jovens para decidir coisa alguma, para achar que a vida se conformou com a conformidade dos nossos planos, para pensar sequer que a morte ou o medo nos pararão um dia. Como talvez já nos tenham abrandado. E eu não quero viver em câmara lenta, de alguma forma não me parece real, nem tão pouco viável - não quando nos sentimos capazes de tanto mais e ansiosos por prova-lo a alguém .

12/01/2007


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E hoje o dia foi mais que especial. Foi estranho. Como se as coisas não estivessem mesmo a acontecer. Pelo menos é o que tu dizes. E agora se vieres ler o que digo, saberás enfim que é para ti que escrevo. Mas já não importa. Pelo menos tu dizes que não. E é por te querer dizer as coisas sem que amanha nos lembremos delas que partilho contigo este dia, que não aconteceu para mim nem para nós, do qual não poderemos falar nunca, que viverá connosco para ser narrado em silêncio cada vez que tropeçar em ti, e nós dois num dia estranho como este.
Não posso dizer mais nada. Tu sabes tudo o que deves saber, e os outros… bem, os outros dar-me-ão um desconto por um post tão vazio – e ao mesmo tempo tão cheio de tudo.
Hoje o dia foi mais que especial. Muito mais. :)

07/01/2007

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Também eu gostava de ser mais que os cinco sentidos. Mais que o quinto elemento, que as formas complexas de fogo, água, ar ou terra. Mais que o eterno dogma sobre uma alma a flutuar entre a memória viva e o esmorecer dos teus dias, para lá dos meus sinais vitais. Eis aí o recuar dos passos, das vagas de frio que nos matam por fora, do calor que nos acolhe e que nos impele para o fogo de dentro. Eis o ciclo de um lugar que é sempre o imprevisto por que esperámos, o quoficiente de paz para o qual não fomos feitos, o rasurar rápido de uma semana, que é hoje o espaço mais que suficiente para sabermos se aceitamos ou não o nosso destino.
Como se eu acreditasse em destinos. Nem sequer na predisposição com que os dados são lançados, mas, ainda assim, delineando linhas que esperamos poder seguir conforme os sonhos. E esses… bem, esses serão sempre sonhos. O motor por excelência da inconformidade dos jovens e da decepção inteligente dos velhos.

03/01/2007

De tanto escrever, deixei de saber falar. Hoje se me pedissem para descrever e conversar de forma clara seria complicado. Perdi o norte algures neste excesso de metáforas e perguntas retóricas. E perdi-o porque não consigo por em frases simples o que realmente quero dizer.
Não que seja uma coisa cruel: nenhuma forma estúpida de maldade ou azar. Talvez o inverso: o ridículo de um sentimento, coisa que até custa escrever de tão piegas que soa!, o dramático de uma realidade que só o é na minha cabeça e que se arrasta pelos meses como se eu não tivesse, de todo, mais nada em que pensar.
No fundo, mesmo no fundo, devemos ter todos assuntos mal resolvidos connosco próprios. E daí as confusões mentais que nos tornam criaturas asfixiadas pelo amor a toda a hora, saturadas do regime devorador desta sociedade hedonista, sensíveis ao mais pequeno manifestar da indiferença do mundo.
Ou então será isto mais um disparate pavoroso onde não se conjugam ideias de senso-comum. Mas vou fingir que não me importo. Não que realmente não me importe, porque me importo. Mas o fingimento e a mentira são ainda uma porta alternativa quando falar verdade parece, por norma, errado.
Acho que custa explicar. Em voz alta ou mesmo por escrito. Talvez porque não sei bem o que quero realmente dizer e nem a tradução em frases simples conseguem tornar a coisa mais natural. Quando olho para mim, vejo apenas a necessidade de te ter perto. Porque quando estás perto, não te quero que te aproximes muito mais, mas que não te vás embora. Mas quando estás longe, como estás quase sempre, sinto-me tender para ele, para o espaço que não é mais o meu espaço, não é mais a minha vontade, nem o meu desejo, nem o meu ideal. Porque não é sequer de ti ou dele que eu gosto, mas algures um equilíbrio entre os dois, um meio-termo impossível de conseguir por fusão a quente ou a frio, sequer por complementação dos dois segundo o calendário, não porque ele não concordasse, mas porque tu não consentirias sequer tal hipótese.
E como deves ter já notado, escrevi e nem devo ter lido bem o que escrevi. Escrevi o que me apeteceu, e se o teu nome me escapou, não haverá mal nenhum nisso, nem afinal em coisa nenhuma, porque, no fundo, aqui ninguém sabe o teu nome, ninguém te conhece, nem sequer tu te podes conhecer se nunca te reviste num lugar assim. E, sabes, por mim escreveria a noite toda, e ficaria o resto da semana, e do mês, já dificilmente do ano que começa agora, a contar-te, e a quem inadvertidamente conseguir acompanhar o que escrevo, sobre coisas sobre as quais jamais algum dia me lembrei de pensar e que se uniram à vontade estranha de hoje te ligar por uma última vez e dizer-te, com todas as letras e vírgulas que a língua portuguesa deixar, que és especial mas parece que ninguém notou ainda, a não ser eu, e que rezo todos os dias que não notem, para que te mantenhas único e livre até que um dia eu desista de te escrever.
E na volta de tanto disparate com direito a tempo de antena, nem eu própria entendo porquê escrever-te se tu não lês, e até sabes onde me encontrar; se não ligas, se já tantas vezes o fizeste; se tu me vês e não entendes o que te digo com os gestos subentendidos na voz gelada e triste que adoptei para me fazer ouvir. Hoje ainda apetece-me chorar, e dizer ao mundo, ou não fosse esta mais uma forma de egocentrismo medíocre!, que me apetece chorar. Porque tu estás à distância de nove dígitos e cinco metros de chão e os meus gritos são sempre demasiado discretos para se fazerem sentir desse lado do muro que construíram por mim.
E eu queria ter escrito coisas simples…
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Beatriz