27/12/2006


Qual o melhor dia que uma véspera de Natal para fugir do mundo e encontrar-me a mim. Ou não andasse eu na procura das crenças por detrás dos hábitos, na procura sazonal de um lugar comum onde a razão e a fé tenham tempo para se escutarem mutuamente.
Estou no jardim do Paço, este que nunca te mostrei; onde se ouve e cheira a fantasia, o gosto e a humildade das aves, o rimar das fontes com a minha credulidade a despertar.
Estou sozinha e, apesar disso, este lugar podia aproximar-se a pormenor da perfeição. Dele não chegaria dizer que a natureza empedrada em canteiros celebra em liberdade esta quadra; que está sol, que o frio não magoa mais, que o vento não fere mais as falanges de quem escreve. Não chegaria de modo algum dizer somente que existem três crianças ali entre os baloiços e os escorregas a sorrir para mim, e para ti também. Não chegaria sequer dizer-te que cheira a tempo, a vagar, àquela paz que ansiamos repetidamente para recomeçarmos do zero.
Por mais que dissesse, sei que nada chegaria para te explicar porque gosto de estar aqui. Só sentindo, só experimentando. Só permitindo que o mundo se adie por algumas horas, só para poderes ter espaço de manobra entre quem és e quem vieste ser neste jardim. Até porque tu também procuras o intervalo ideal entre a tese que a razão sugere e o Amor que um Deus Menino um dia trouxe ao mundo. Porque tu também queres acreditar que é Natal e que o Natal assim se acolhe porque Ele nasceu, não para ser adorado, mas para ser repetido. Porque Ele nasceu para que entendêssemos que o Amor não se negocia nunca, que nasce homem e se torna divino cada vez que se repete em nós.É por isso que faz todo o sentido este jardim e este Natal. Ainda. Porque, não importa como nem quando, o Amor há-se ser sempre celebrado. Porque onde quer que tu estejas, eu penso em ti. E nele. E no Deus Menino também. E desejo que um dia, quem sabe se não numa véspera de Natal como esta, conheças este lugar. E saibas então como é ver as coisas como eu as vejo.





esrito a 23 de Dezembro de 2006

19/12/2006



Quem dera que olhasses e visses o mesmo que eu. Um longe que, por mais que olhe, ficará sempre tão longe; um céu tão igual ao céu de todos os dias; o minguar de uma tarde imersa no prateado das nuvens, no calor esvaindo-se-me das mãos, escondida no escurecer de tanta coisa por dizer. O vazio que sugere, hoje e sempre, a imutabilidade e a eventualidade de um destino. O repicar de um sino com medo de ser fazer escutar, o som de um segredo vestido do avesso. A musicalidade do tempo a passar, a forma de um alma trocada em palavras.
Quem dera que olhasses e visses o mesmo que eu.

17/12/2006




São ainda as tuas músicas que me aquecem quando o que sinto é o frio dele a largar-me a mão. Quando o perfume que me ficou na pele é o dele e o braço que me segura pela cintura não o teu, mas o dele. São ainda as tuas músicas e a tua filosofia sobre manhãs por acontecerem que escuto quando a minha tarde e a minha noite são dele, nunca teus. Quando ficar mais leve implica esquecer-me de fingir e abrir os braços, voar no abraço que é dele, e não teu; e amar as longitudes ímpares, e não pares, o rasurar transversal de linhas que falam dele e às vezes de ti, e o progredir para aquele mundo adiante que é dele, e não teu, como que fugindo do bem e do mal de que és feito e me fazes ser; como que vivendo para te ter longe, tal como te parece tantas vezes o ideal, e a mim também. São ainda as tuas músicas que me aquecem, tuas as baladas que persigo, teus os conselhos e as críticas, teus os olhos tristes. Mas é para ele que tento ir. E se desta vez não for para ele, tanto faz, porque há-de ser para outro qualquer que não tu ou a sombra inquieta do que és nas vidas suspensas que hoje não te procuram mais. Não nos cafés mais próximos, não nas horas certas onde ainda sei que estarás, com toda a certeza. E, sabes, não faz mal. Um dia, não serão mais as tuas músicas que me aquecerão ou embalarão na viagem de uma lágrima a um sorriso. Não mais as tuas músicas, as tuas filosofias sobre manhãs por acontecerem e pedaços de tempo que jamais se hão de repetir. Um dia, não serão mais as tuas músicas. Nem os teus olhos tristes.

15/12/2006

Wind


Queria falar-te em coisas simples e fáceis de explicar. De cenários altamente prováveis e de circunstâncias banais. De um cheirinho a canela e a açúcar entornados na minha vida e na imensidão de espaços a sobrar de ti e dela. Queria falar-te em semáforos que se abrem e de estores que se fecham, de casacos que se apertam e olhares que nos fogem em direcções que não pensámos sequer puderem existir. Mas que existem. E que me fazem apetecer falar em músicas fáceis de digerir, em literatura de cordel, em revistas cor-de-rosa, e apesar de tudo sentir que nada me disso me diminuiria, diante de ti ou diante dela.
Apetecia-me não ter medo de ser demasiado ou insuficiente para ti; de achar que, num repente estranho de entender, fosse feita à medida do teu equilíbrio, à medida da tua forma simples de ser mais que todos e, ainda assim, na sombra da promessa do que ainda serás. Apetecia-me gastar uma vida inteira a prometer a felicidade eterna em coisas fúteis. E a entornar a canela e o açúcar que me aprouvesse, sem que se esgotassem, sem que te cansasses e desaparecesses enfim. Apetecia-me saber que nos próximos vinte anos poderei ainda ser eu e, que dentro de vinte anos, estarás perto. Sem que seja preciso chamar por ti. Sem que seja preciso sequer abrir os olhos para sabe-lo.
Apetecia-me, enfim, saber como falar de coisas simples e fáceis de explicar. E de não ter medo de ser demasiado ou insuficiente para ti e para o Mundo. Sem que precisasse sequer escrever ou esperar. Sem que precisasse sequer ter medo.

13/12/2006



Era capaz de me apaixonar por isto aqui. Pela frescura do que ainda é novo e tem tanto para me revelar. Pelos reflexos de solidão, pela imagem que encontro em mim e no fundo de água parada que ainda balança nos teus olhos. Não tolero mentir. E na proximidade de tantos segredos, que eu não fui feita para revelar, apetece-me esta paz, este mistério maior que tudo que acontece no meu mundo, este verde e este castanho, este cheiro a terra molhada, a caminhos distendidos e apagados entre o chão que as folhas deviam esconder; este romper da madrugada enquanto ainda sonho para acordar e saber que só tu me esperas, em longitudes onde nem o sonho podia compensar.
As coisas não deviam ser assim. E tu nunca devias ter seguido no paralelo da tua realidade sem saber quantos mistérios maiores que tudo a vida me prometeu. Sinto a tua falta e tu entendes isso quando lês o que os meus olhos dizem. E só o lamentas. E só esperas um dia acordar e saber que, longe, encontrei um porto calmo de abrigo, onde ao longe se avista a utopia de um silêncio que eu nunca desejei.
E sim, era capaz de me apaixonar por isto aqui. E de Ser em conformidade com o que a alma pedisse que fosse. Sem pressas, sem temor, sem a cor do entardecer falando-me de ti. Sem um rumor que não o da água a passar por mim; sem o sentir que se altera e as esperas indefinidas de um vento que o Tempo esqueceu. Seria capaz de Ser apenas. Sem medir as palavras, o tempo e a forma como te as digo e te as faço entender. Sem rancor, sem culpa, sem sequer noção completa do espaço e das formas. Capaz apenas de me entregar aos cheiros, aos toques, aos sons. À natureza de novo descoberta na imagem de uma fantasia. Seria em conformidade com o que alma me pedisse que fosse. E tu não serias senão as sombras ondulante de um fundo de água parada que ainda hoje balança nos teus olhos.

10/12/2006

A 5ª. Edição do Canto de Contos




Estão a discutir outra vez. Já faz parte. Tal como as olheiras que ela terá amanhã de manhã, enquanto me desejar Feliz Natal. Tal como o semblante que ele terá enquanto fingir que nada se passou. Tal como o choro miúdo da avó que diz que a culpa é sua e que se morresse todos nós ficaríamos melhor.
E eu… eu digo à avó que a culpa não é de ninguém. Que todos têm maus momentos. E que ela ainda há-de viver por muitos, muitos anos.
Digo, no fundo, o politicamente correcto. Porque eu sei que aquele não é afinal um mau momento, mas um entre tantos, com a diferença de todos os anos se suceder indiferente à quadra. E sei também que a avó não vai viver por muitos mais anos – porque ela não quer.
Porém, também sei que culpa alguma morre solteira, e esta culpa não é da avó mas minha. Sempre o foi. E ela lembra-me disso a cada discussão.
Recordo-me agora de ouvir dizer que os filhos de um divórcio se debatem com isso, com essa culpa. Mas terão, talvez, duas partes jurando sempre que a culpa não é deles. Que a culpa não é de ninguém. Provavelmente porque são pequenos demais para carregar pela vida fora um fardo assim, uma culpa tão imensa. Ainda para mais se for noite de Natal.
Eu, por outro lado, sei que sim. Que a culpa é minha e sempre o foi. Porque ela me o diz, porque ela faz com que eu acredite religiosamente nisso.
Este ano tenho novamente muitas prendas à minha espera. Dá para ver naquele saco acolá, logo ali à entrada. Não que eu ache que as mereça. Mas fui afinal a criança que nunca deu arrelias a ninguém. A filha que eles dois sempre quiseram. A filha que ela sempre quis. Ainda que culpada.
Cá fora, debaixo do pinheiro que o avô plantou quando eu nasci, sei que a discussão continua. Ela chora e diz que a culpa é sua. Ele exaspera-se e pede-lhe que não seja dramática. Os tons de voz alteram-se. E consigo agora escutar apenas palavras soltas. Mas não posso chorar.
De repente, ela veio cá fora. Não olha para mim, mas move-se como que reagindo à minha presença. As olheiras já lá estão; assim como as expressões vincadas no rosto, assim como o ódio e o descrédito delineando e envelhecendo-lhe o espírito. Veio fumar. Nunca, alguma vez, a tinha visto fumar. Nem sei onde arranjou tabaco àquela hora. E enquanto sopra o fumo nauseante do cigarro, continua a não a olhar para mim.
Acho que me diz que a vida dela estagnou por causa da minha. Que o mundo dela gira em torno do meu. E que a culpa disso tudo, e de tudo o que demais a mata aos poucos, é minha. Que a culpa é minha, e sempre foi.
Um vento frio insuflou-se entre nós duas, agorinha mesmo. É um frio cortante, sabe-me a solidão. E logo de seguida, o sino começou a tocar. E ainda toca. Sei, enfim, que Jesus nasceu numa noite como esta, Ele que devia nascer sob uma noite brilhante, de lua prateada e cheia, numa noite de alegria, união, paz e amor. Ao invés, é uma noite de solidão. Como afinal têm sido todas as noites de Natal desde há tanto tempo. Uma noite onde me sinto mais quente e em paz cá fora, na ombreira desta porta, escrevendo; pretendendo fazer crer a um destinatário ausente que a culpa não é minha. Mas esse destinatário nem do longe consente o perto. Nunca há-de cá estar para me convencer que a culpa não é minha.
Por isso, eu escrevo. Mesmo que sem resposta. E hoje, depois de dezassete anos, sei ainda que a culpa é minha. E que sempre o foi. Feliz Natal.
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Eis o meu conto de Natal. Adequado a um estado de espírito, puramente fictício.

07/12/2006

Alcains


Fui eu que tirei aquela foto, sabes? Uma vez mais perdida no horizonte de um infância que insiste em tornar-se um ideal. E sei que nada se perdeu, sem que um futuro se prendesse em nós como uma ameaça certa do que está por vir.
Devagar, penso nele. E em ti. E no avô. E, sem querer, vejo a tarde a cair sobre mim e a luz de tantas formas de sonho a esfumarem-se na noite. Sinto a distância neste capricho de vida que só hoje quis florir. E procuro, em todos as tardes que morrem em mim, o desígnio de uma porta aberta onde o silêncio é o sentir que se altera e o esquecimento que persigo. E eu ainda assim, vou ficando. E vejo sempre, além daquela porta aberta, o sentido do que foi ficando atrás de mim. Sem retorno. As palavras ditas no calor das sensações. Os olhares roubados que deviam ter sido enganos. As saudades que se cantam perante o tempo a passar por nós. As frases que se escrevem e que nunca têm o retorno. E que nunca nos respondem.

05/12/2006

Um mundo que se compromete, e se revela, e se condensa num ponto único do tempo, quando tudo se repete, quando a vida volta ao início, e ele regressa, tal a imagem, tal as formas, segundo a cor, conforme o brilho, através de uma voz que perdura e se encaixa nas minhas mãos e no meu medo, na pele de uma vontade demasiado simples, demasiado ténue.
E eis assim um mundo que se compromete, e se revela. Mas tu não foste feito para reparar que algo mudou. E que a vida persiste ainda aos teus pés, como sempre foi, mas eu não.
E hoje ele regressa. E eu deixo. Volta tal uma lembrança volátil que me diz todos os dias que não consigo ser livre de ti, e me faz tentar. Todos os dias outra vez. E outra vez. E outra vez. E hoje ele regressou. E tanta coisa mudou e tu não sabes. A vontade natural de me esquecer de quem sou e de me apropriar do céu com a alma. De me entregar à voz que vem de dentro mas que não é minha. Nem tua. De contar as estrelas do céu e ter tempo para as recontar quantas vezes quiser.
E hoje ele regressou. E regressou com uma lição de entendimento mútuo que tive de aprender para poder continuar. Regressou com nada numa mão e com tudo o que poderia pedir na outra. E hoje ele regressa e eu quero acreditar que o mundo é redondo, que as lendas existem e que os sonhos nos modelam na decisão do que somos a cada manhã. E não importará mais o número de estrelas que só tu vês. Nem o espaço imenso que só tu entendes. Importará apenas o Tempo. O que te sobrar entre os dias para reparares que existe um lugar vazio no paralelo da tua vida, um cantinho escondido prometendo nunca mais ter de contar as tuas estrelas, segundo o teu espaço, segundo o teu tempo.
E hoje eu regresso. Na mansidão de tantas promessas que a espuma das ondas apagou na areia de tantos Verões… Para um porto de abrigo, onde um futuro maior faz cada vez menos sentido. E ao longe avisto o mar, para onde fico, hoje e sempre, suspensa a olhar.