27/12/2006


Qual o melhor dia que uma véspera de Natal para fugir do mundo e encontrar-me a mim. Ou não andasse eu na procura das crenças por detrás dos hábitos, na procura sazonal de um lugar comum onde a razão e a fé tenham tempo para se escutarem mutuamente.
Estou no jardim do Paço, este que nunca te mostrei; onde se ouve e cheira a fantasia, o gosto e a humildade das aves, o rimar das fontes com a minha credulidade a despertar.
Estou sozinha e, apesar disso, este lugar podia aproximar-se a pormenor da perfeição. Dele não chegaria dizer que a natureza empedrada em canteiros celebra em liberdade esta quadra; que está sol, que o frio não magoa mais, que o vento não fere mais as falanges de quem escreve. Não chegaria de modo algum dizer somente que existem três crianças ali entre os baloiços e os escorregas a sorrir para mim, e para ti também. Não chegaria sequer dizer-te que cheira a tempo, a vagar, àquela paz que ansiamos repetidamente para recomeçarmos do zero.
Por mais que dissesse, sei que nada chegaria para te explicar porque gosto de estar aqui. Só sentindo, só experimentando. Só permitindo que o mundo se adie por algumas horas, só para poderes ter espaço de manobra entre quem és e quem vieste ser neste jardim. Até porque tu também procuras o intervalo ideal entre a tese que a razão sugere e o Amor que um Deus Menino um dia trouxe ao mundo. Porque tu também queres acreditar que é Natal e que o Natal assim se acolhe porque Ele nasceu, não para ser adorado, mas para ser repetido. Porque Ele nasceu para que entendêssemos que o Amor não se negocia nunca, que nasce homem e se torna divino cada vez que se repete em nós.É por isso que faz todo o sentido este jardim e este Natal. Ainda. Porque, não importa como nem quando, o Amor há-se ser sempre celebrado. Porque onde quer que tu estejas, eu penso em ti. E nele. E no Deus Menino também. E desejo que um dia, quem sabe se não numa véspera de Natal como esta, conheças este lugar. E saibas então como é ver as coisas como eu as vejo.





esrito a 23 de Dezembro de 2006

19/12/2006



Quem dera que olhasses e visses o mesmo que eu. Um longe que, por mais que olhe, ficará sempre tão longe; um céu tão igual ao céu de todos os dias; o minguar de uma tarde imersa no prateado das nuvens, no calor esvaindo-se-me das mãos, escondida no escurecer de tanta coisa por dizer. O vazio que sugere, hoje e sempre, a imutabilidade e a eventualidade de um destino. O repicar de um sino com medo de ser fazer escutar, o som de um segredo vestido do avesso. A musicalidade do tempo a passar, a forma de um alma trocada em palavras.
Quem dera que olhasses e visses o mesmo que eu.

17/12/2006




São ainda as tuas músicas que me aquecem quando o que sinto é o frio dele a largar-me a mão. Quando o perfume que me ficou na pele é o dele e o braço que me segura pela cintura não o teu, mas o dele. São ainda as tuas músicas e a tua filosofia sobre manhãs por acontecerem que escuto quando a minha tarde e a minha noite são dele, nunca teus. Quando ficar mais leve implica esquecer-me de fingir e abrir os braços, voar no abraço que é dele, e não teu; e amar as longitudes ímpares, e não pares, o rasurar transversal de linhas que falam dele e às vezes de ti, e o progredir para aquele mundo adiante que é dele, e não teu, como que fugindo do bem e do mal de que és feito e me fazes ser; como que vivendo para te ter longe, tal como te parece tantas vezes o ideal, e a mim também. São ainda as tuas músicas que me aquecem, tuas as baladas que persigo, teus os conselhos e as críticas, teus os olhos tristes. Mas é para ele que tento ir. E se desta vez não for para ele, tanto faz, porque há-de ser para outro qualquer que não tu ou a sombra inquieta do que és nas vidas suspensas que hoje não te procuram mais. Não nos cafés mais próximos, não nas horas certas onde ainda sei que estarás, com toda a certeza. E, sabes, não faz mal. Um dia, não serão mais as tuas músicas que me aquecerão ou embalarão na viagem de uma lágrima a um sorriso. Não mais as tuas músicas, as tuas filosofias sobre manhãs por acontecerem e pedaços de tempo que jamais se hão de repetir. Um dia, não serão mais as tuas músicas. Nem os teus olhos tristes.

15/12/2006

Wind


Queria falar-te em coisas simples e fáceis de explicar. De cenários altamente prováveis e de circunstâncias banais. De um cheirinho a canela e a açúcar entornados na minha vida e na imensidão de espaços a sobrar de ti e dela. Queria falar-te em semáforos que se abrem e de estores que se fecham, de casacos que se apertam e olhares que nos fogem em direcções que não pensámos sequer puderem existir. Mas que existem. E que me fazem apetecer falar em músicas fáceis de digerir, em literatura de cordel, em revistas cor-de-rosa, e apesar de tudo sentir que nada me disso me diminuiria, diante de ti ou diante dela.
Apetecia-me não ter medo de ser demasiado ou insuficiente para ti; de achar que, num repente estranho de entender, fosse feita à medida do teu equilíbrio, à medida da tua forma simples de ser mais que todos e, ainda assim, na sombra da promessa do que ainda serás. Apetecia-me gastar uma vida inteira a prometer a felicidade eterna em coisas fúteis. E a entornar a canela e o açúcar que me aprouvesse, sem que se esgotassem, sem que te cansasses e desaparecesses enfim. Apetecia-me saber que nos próximos vinte anos poderei ainda ser eu e, que dentro de vinte anos, estarás perto. Sem que seja preciso chamar por ti. Sem que seja preciso sequer abrir os olhos para sabe-lo.
Apetecia-me, enfim, saber como falar de coisas simples e fáceis de explicar. E de não ter medo de ser demasiado ou insuficiente para ti e para o Mundo. Sem que precisasse sequer escrever ou esperar. Sem que precisasse sequer ter medo.

13/12/2006



Era capaz de me apaixonar por isto aqui. Pela frescura do que ainda é novo e tem tanto para me revelar. Pelos reflexos de solidão, pela imagem que encontro em mim e no fundo de água parada que ainda balança nos teus olhos. Não tolero mentir. E na proximidade de tantos segredos, que eu não fui feita para revelar, apetece-me esta paz, este mistério maior que tudo que acontece no meu mundo, este verde e este castanho, este cheiro a terra molhada, a caminhos distendidos e apagados entre o chão que as folhas deviam esconder; este romper da madrugada enquanto ainda sonho para acordar e saber que só tu me esperas, em longitudes onde nem o sonho podia compensar.
As coisas não deviam ser assim. E tu nunca devias ter seguido no paralelo da tua realidade sem saber quantos mistérios maiores que tudo a vida me prometeu. Sinto a tua falta e tu entendes isso quando lês o que os meus olhos dizem. E só o lamentas. E só esperas um dia acordar e saber que, longe, encontrei um porto calmo de abrigo, onde ao longe se avista a utopia de um silêncio que eu nunca desejei.
E sim, era capaz de me apaixonar por isto aqui. E de Ser em conformidade com o que a alma pedisse que fosse. Sem pressas, sem temor, sem a cor do entardecer falando-me de ti. Sem um rumor que não o da água a passar por mim; sem o sentir que se altera e as esperas indefinidas de um vento que o Tempo esqueceu. Seria capaz de Ser apenas. Sem medir as palavras, o tempo e a forma como te as digo e te as faço entender. Sem rancor, sem culpa, sem sequer noção completa do espaço e das formas. Capaz apenas de me entregar aos cheiros, aos toques, aos sons. À natureza de novo descoberta na imagem de uma fantasia. Seria em conformidade com o que alma me pedisse que fosse. E tu não serias senão as sombras ondulante de um fundo de água parada que ainda hoje balança nos teus olhos.

10/12/2006

A 5ª. Edição do Canto de Contos




Estão a discutir outra vez. Já faz parte. Tal como as olheiras que ela terá amanhã de manhã, enquanto me desejar Feliz Natal. Tal como o semblante que ele terá enquanto fingir que nada se passou. Tal como o choro miúdo da avó que diz que a culpa é sua e que se morresse todos nós ficaríamos melhor.
E eu… eu digo à avó que a culpa não é de ninguém. Que todos têm maus momentos. E que ela ainda há-de viver por muitos, muitos anos.
Digo, no fundo, o politicamente correcto. Porque eu sei que aquele não é afinal um mau momento, mas um entre tantos, com a diferença de todos os anos se suceder indiferente à quadra. E sei também que a avó não vai viver por muitos mais anos – porque ela não quer.
Porém, também sei que culpa alguma morre solteira, e esta culpa não é da avó mas minha. Sempre o foi. E ela lembra-me disso a cada discussão.
Recordo-me agora de ouvir dizer que os filhos de um divórcio se debatem com isso, com essa culpa. Mas terão, talvez, duas partes jurando sempre que a culpa não é deles. Que a culpa não é de ninguém. Provavelmente porque são pequenos demais para carregar pela vida fora um fardo assim, uma culpa tão imensa. Ainda para mais se for noite de Natal.
Eu, por outro lado, sei que sim. Que a culpa é minha e sempre o foi. Porque ela me o diz, porque ela faz com que eu acredite religiosamente nisso.
Este ano tenho novamente muitas prendas à minha espera. Dá para ver naquele saco acolá, logo ali à entrada. Não que eu ache que as mereça. Mas fui afinal a criança que nunca deu arrelias a ninguém. A filha que eles dois sempre quiseram. A filha que ela sempre quis. Ainda que culpada.
Cá fora, debaixo do pinheiro que o avô plantou quando eu nasci, sei que a discussão continua. Ela chora e diz que a culpa é sua. Ele exaspera-se e pede-lhe que não seja dramática. Os tons de voz alteram-se. E consigo agora escutar apenas palavras soltas. Mas não posso chorar.
De repente, ela veio cá fora. Não olha para mim, mas move-se como que reagindo à minha presença. As olheiras já lá estão; assim como as expressões vincadas no rosto, assim como o ódio e o descrédito delineando e envelhecendo-lhe o espírito. Veio fumar. Nunca, alguma vez, a tinha visto fumar. Nem sei onde arranjou tabaco àquela hora. E enquanto sopra o fumo nauseante do cigarro, continua a não a olhar para mim.
Acho que me diz que a vida dela estagnou por causa da minha. Que o mundo dela gira em torno do meu. E que a culpa disso tudo, e de tudo o que demais a mata aos poucos, é minha. Que a culpa é minha, e sempre foi.
Um vento frio insuflou-se entre nós duas, agorinha mesmo. É um frio cortante, sabe-me a solidão. E logo de seguida, o sino começou a tocar. E ainda toca. Sei, enfim, que Jesus nasceu numa noite como esta, Ele que devia nascer sob uma noite brilhante, de lua prateada e cheia, numa noite de alegria, união, paz e amor. Ao invés, é uma noite de solidão. Como afinal têm sido todas as noites de Natal desde há tanto tempo. Uma noite onde me sinto mais quente e em paz cá fora, na ombreira desta porta, escrevendo; pretendendo fazer crer a um destinatário ausente que a culpa não é minha. Mas esse destinatário nem do longe consente o perto. Nunca há-de cá estar para me convencer que a culpa não é minha.
Por isso, eu escrevo. Mesmo que sem resposta. E hoje, depois de dezassete anos, sei ainda que a culpa é minha. E que sempre o foi. Feliz Natal.
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Eis o meu conto de Natal. Adequado a um estado de espírito, puramente fictício.

07/12/2006

Alcains


Fui eu que tirei aquela foto, sabes? Uma vez mais perdida no horizonte de um infância que insiste em tornar-se um ideal. E sei que nada se perdeu, sem que um futuro se prendesse em nós como uma ameaça certa do que está por vir.
Devagar, penso nele. E em ti. E no avô. E, sem querer, vejo a tarde a cair sobre mim e a luz de tantas formas de sonho a esfumarem-se na noite. Sinto a distância neste capricho de vida que só hoje quis florir. E procuro, em todos as tardes que morrem em mim, o desígnio de uma porta aberta onde o silêncio é o sentir que se altera e o esquecimento que persigo. E eu ainda assim, vou ficando. E vejo sempre, além daquela porta aberta, o sentido do que foi ficando atrás de mim. Sem retorno. As palavras ditas no calor das sensações. Os olhares roubados que deviam ter sido enganos. As saudades que se cantam perante o tempo a passar por nós. As frases que se escrevem e que nunca têm o retorno. E que nunca nos respondem.

05/12/2006

Um mundo que se compromete, e se revela, e se condensa num ponto único do tempo, quando tudo se repete, quando a vida volta ao início, e ele regressa, tal a imagem, tal as formas, segundo a cor, conforme o brilho, através de uma voz que perdura e se encaixa nas minhas mãos e no meu medo, na pele de uma vontade demasiado simples, demasiado ténue.
E eis assim um mundo que se compromete, e se revela. Mas tu não foste feito para reparar que algo mudou. E que a vida persiste ainda aos teus pés, como sempre foi, mas eu não.
E hoje ele regressa. E eu deixo. Volta tal uma lembrança volátil que me diz todos os dias que não consigo ser livre de ti, e me faz tentar. Todos os dias outra vez. E outra vez. E outra vez. E hoje ele regressou. E tanta coisa mudou e tu não sabes. A vontade natural de me esquecer de quem sou e de me apropriar do céu com a alma. De me entregar à voz que vem de dentro mas que não é minha. Nem tua. De contar as estrelas do céu e ter tempo para as recontar quantas vezes quiser.
E hoje ele regressou. E regressou com uma lição de entendimento mútuo que tive de aprender para poder continuar. Regressou com nada numa mão e com tudo o que poderia pedir na outra. E hoje ele regressa e eu quero acreditar que o mundo é redondo, que as lendas existem e que os sonhos nos modelam na decisão do que somos a cada manhã. E não importará mais o número de estrelas que só tu vês. Nem o espaço imenso que só tu entendes. Importará apenas o Tempo. O que te sobrar entre os dias para reparares que existe um lugar vazio no paralelo da tua vida, um cantinho escondido prometendo nunca mais ter de contar as tuas estrelas, segundo o teu espaço, segundo o teu tempo.
E hoje eu regresso. Na mansidão de tantas promessas que a espuma das ondas apagou na areia de tantos Verões… Para um porto de abrigo, onde um futuro maior faz cada vez menos sentido. E ao longe avisto o mar, para onde fico, hoje e sempre, suspensa a olhar.

30/11/2006


Sim, eu sei. O homem e a hora como um só. O repensar, o redefinir. O repetir tantas formas estranhas de um só sonho; de um sonho cor de azul, delineado a lápis de cera cor de sol e de lua, onde cabem todas as formas estranhas de desejo e vontade. Mas também tantas coisas que não estão certas, e que se adiam constantemente por motivos de força maior. E te concebem triste, só; tal um mistério, um raiar ofuscante de emoções que ninguém conhece, que ninguém entende, que todos ignoram. Um secreto vínculo com uma forma de amar ultrapassada pelo tempo, crescendo entre o silêncio frio do que dizes e a voz indistinta do teu eco.
E num mundo onde tudo se convenciona como conexo de tantas metamorfoses, só tu cabes, só tu sonhas, só tu és. A verdade redonda do balançar das ondas chamando-me baixinho em cada gesto, em cada olhar. O mar que soa por detrás das palavras crespas, como um só mar que se despede da tua ideia a oscilar por entre os dias… um mar que foi ficando; e envelhecendo. Secando-se no nosso olhar salgado olhando-o pela primeira vez. E repetindo. Repetindo sempre os pregões de amor que abandonámos à porta.E tu… tu dizes, hoje e sempre, que sorrirás perpetuamente, em cada ocasião que te acenem de longe. E eu… eu talvez ainda procure o mesmo mar, talvez ainda aguarde os mesmo sinos, as mesmas formas estranhas de um só sonho, chamando-me a um desígnio que, hoje ainda, tenciono encontrar. E hoje ainda, o sonho será só um, em todas as suas formas e caminhos; em um só Deus, numa só Fé, num só mar. Até onde as palavras o possam levar. Até onde as palavras me levem a mim.

29/11/2006

Alcains
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"Now I think I know what you tried to say to me
How you suffered for you sanity
How you tried to set them free
They would not listen they're not listening still.
Perhaps they never will."
....
(Vincent (Starry Starry Night), Don McLean)

27/11/2006

Flowers of the Universe

by Brenda Wilbert

Eu acredito que sim. Que, um dia, o Mundo foi plano, e que os homens caminharam para lá da dimensão da sua realidade, rompendo com os presságios da sua própria Sorte, balouçando como velas soltas, faiscando de encontro à tempestade, construindo impérios de entendimento e de sonho, tão maiores que tu, tão maiores que eu, tão maiores que tudo: oceano, Terra ou Distância.
E acredito que o Universo resiste sempre na virtude de um único Deus, de um Amor incondicional e contemplativo, desenhado numa plataforma onde não existem perguntas mas certezas. E acredito que, mais dia menos dia, não pensarei mais em fazer voar pombas brancas de uma cartola, ou em acertar com o refúgio das palavras redondas que ficariam bem quando ditas na hora H. Acredito que a minha vida será independente dos planetas a girar sobre si e das palavras a moverem-se em elipses perfeitas. Vigiarei num lugar pequeno mas quente – onde?, não sei ainda, mas quando souber, talvez te o diga. E ficar-me-ei pelas crenças indisponíveis a sumirem-se no quotidiano de tantas almas paralelas. E pelas palavras compridas, pelo diâmetro das cores quando tingidas de forma, pelos ideais messiânicos que prometem todos os dias um novo futuro. E então tudo será medido em perspectiva, nunca segundo verdades absolutas, sempre conforme o tempo e o espaço, de hoje e de ontem.

26/11/2006

Glasgow

Glasgow Comission

Sinto que entendes que a virtude nunca espera sozinha numa qualquer esquina do pensamento. E que com ela existem letras e letras, encafuadas em vãos de escada, onde o tempo se esqueceu de avançar; onde afinal a consumação de todas elas não foi mais do que um rabisco em papel; onde a vida, hoje e novamente, lhes parece todos os dias adiada.
Aquela imagem que vês adiante é como me imaginava ainda agora. Não sei se era eu que te dava a minha mão, se eras tu que me davas a tua. O que vejo afinal é apenas a tonalidade das cores a descair-se dos cantos; o rubor de tantas sensações com as quais me podia encaixar naquele quadro. Falo talvez com uma voz que não devia ser minha, porque sou demasiado nova. Ou talvez finja uma voz porque não consigo descortinar o timbre da minha, nem o significado das coisas que diz. Também a mim um simples sim não chegaria para te dizer que nem tudo vai bem, como já dizia a escritora. E que o temperamento das luzes que hoje se acendem é suficiente para prolongar, uma e outra vez, a persistência de tantas letras encafuadas em vãos de escada.
E existem tantas formas mais simples de dizer que gosto de ti. E tantas redundâncias que aproximam e afastam as palavras de uma realidade feita à minha escala. Deve ter sido por isso que escolhi esta imagem, ainda antes de saber sobre o que ia escrever. Porque um tema, às vezes, faz-me olhar o papel vazio como um espelho demasiado fiel a mim própria. E eu isso não quero: descobrir que apesar das tonalidades vibrantes das cores, sou transparente, e tentada a ficar vazia, da palidez da folha de papel, da textura de um rol de intenções que não conseguem sequer ser ideias.

23/11/2006

Red Woman Red Umbrella

Sei que sim. Que o universo das coisas é demasiado grande para me inteirar de todo ele. Que o vagar dos dias às vezes pesa muito mais que a pressa de o encontrar. E que quando o encontro, registo palavras que chegam por ecos até onde nunca pensei que coisa alguma conseguisse chegar.
Abri o guarda-chuva novamente. Mesmo sem chover, far-me-ia lembrar que ainda é Novembro, não ainda tempo de celebrar o aniversário de coisa alguma. E enquanto é Novembro, também o tempo de me encostar ao recorte justo das avenidas se perde. Ficam sensações estranhas. Um remar incontornável, que nem contra a corrente consegue ser, porque se rejeitaram todas as filosofias. É um remar parado, sobre o qual não se vê mais ninguém, sequer uma indicação a dizer “final da viagem” ou “estação de serviço”. E enfim não entendo se disse de mais ou de menos. Se hoje ainda faria diferença tentar remendar algo feito, sem saber bem por onde devesse começar. Pois hoje sei apenas que o universo das coisas é demasiado grande. E que se disse sim, não sei até que ponto a única alternativa teria sido apenas um “não”. Pois no vagar que os dias têm de entre toda essa pressa que levam, tudo pesa muito mais. Tudo nos vem de repente à memória, questionando cada escolha, cada caminho, cada meta.

18/11/2006

Home Fields

Home fields

Foi há muito, muito tempo; num cantinho escondido do recuar das recordações. Lembro-me que havia um caminho, e no horizonte o esboço de uma estação de comboios. Lembro-me que estava sozinha. E que atirava pedras para charcos parados onde a vida, onde o ritmo e o tacto da vida haviam há muito parado. Como afinal tudo o resto. E naquele dia acho que soube que parar não seria morrer, mas esperar pelo resto dos dias, sem se ter sequer ansiedade; esperar por um nada, onde nada se acomete, onde nada se sucede, em virtude da força, do peso e da saúde da idade da minha avó.
E eu ali estava. Talvez sem saber da responsabilidade implicada no sonhos. Com tantos Verões ainda pela frente, sem saber no fundo o que fazer com todos eles.
Naquelas tardes, perdíamos a reacção. Pelo menos, eu perdia. E hoje ainda, quando os sinos tocam, vejo que perdi muitos anos. E que durante todos esses anos, deixei de subir às árvores. E de conhecer outros caminhos. Deixei que, Verão após Verão, Inverno após Inverno, eu crescesse, em vez de rumar a uma terra chamada Nunca, onde nunca, por nunca mesmo!, nos obrigam a crescer. Onde nunca existem romãs demasiado verdes ou pedaços de bolo que engordam. Onde não existem sequer sonhos impossíveis. Onde só existe aquela imensidão de searas, recortadas pelo aroma de uma infância que, parecendo que não, ainda persiste. Onde tudo seria simples e saberia a cerejas. E teria o gosto de uma história. De uma história que aconteceu há muito, muito tempo. Num cantinho escondido da memória.

16/11/2006

"Fog in the City"



Às vezes pareces ser suficiente. E condensar assim o destino de aguarela que pareci escolher. Vivo à sombra do nevoeiro, dirias tu, com os olhos encostados ao vidro embaciado dos táxis. E de repente, consigo encontrar-te num qualquer semáforo fechado, tal uma promessa de chuva em que os meus sonhos estagnaram. Como se isso fosse possível, dirias também. E roubar-me-ias aos poucos a razão de ser; o desassossego; a voz de uma escrita que não consegue ser sequer raiva, sequer medo. Uma voz palpitante que não chega a tanto, que emudeceu com um outro qualquer passado, com outro qualquer destino. E eu escolhi-te logo a ti, a ti que acreditas na transmutação dos universos paralelos, que não consentes em planos feitos de papel para uma existência, sempre, sempre em atraso. Logo a ti e, talvez quem sabe?, também àquele instante final antes dos semáforos abrirem, antes do recomeço lento da vida embrulhada em desordem e ideais de progresso. Mesmo antes do meu táxi chegar uma vez mais ao destino. E de o vento recomeçar uma nova e tristonha contagem sobre o direito a se sentir escutado.
E eu… eu escolhi-te logo a ti. E dizem que não me compete saber porquê.

13/11/2006



Saberei sempre quão longe consigo estar. Tal a roleta de uma vida que aponta o decurso aleatório dos dias da forma mais simples. Confio que perto, demasiado perto, existirão sempre respostas. E que no intervalo das horas, dessas horas inclusas no tempo da minha, da nossa história, existirão sempre novos prenúncios, sempre novas vontades.
E depois – tu sabes –, sobrevoou na medida dos dias, o destino que construí de uma hipótese. Faço dele a implacabilidade de uma certeza; e depois, no imediato que procede a vontade, sou afinal, aos teus olhos, apenas mais uma, confiante em tiros no escuro. Eu por cá, achar-me-ei sempre entregue de alma nos objectos de culto, nas forças magnéticas das paixões servis, nos espaços em que os poetas escondem os Verões e os formatos de amor que ficaram por revelar.
Pode ser que um dia acorde com o destino traçado. E que, então, as decisões se adiem indefinidamente, e que decorram sem consequências, sem pressa, sem rubor. Que fujam numa inútil procura de um ponto no tempo em que seja segredo o vem a seguir. Em que, de mão em mão, se sucedam memórias, mas nunca futuros.

12/11/2006

"Viva Forever"

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«Back where I belong now, was it just a dream,
Feelings unfold, they will never be sold, and the secret's safe with me.»

07/11/2006


Pressinto que a passividade dos dias mudou. O ritmo das horas, as viagens de comboio, a importância das gotas de chuva acumulando-se na consciência. Que tudo isso mudou. E a nostalgia. A nostalgia guardada para os momentos em que a mereço. O rancor, com quem tantas vezes me deitei, usado como se usam medalhas, como se ostentam conquistas, conquistas que tiveram afinal o fim sempre tão obvio, sempre tão perto.
Desculpa se falo sempre do mesmo. Desculpa se não sou como tu. Às vezes lembro-me que não falo para ti e ignoro que possas acreditar que sou apenas isto. Mas o que sobra por dizer, por mais que diga, é sempre tanto: às vezes ideia soltas, ideias soltas no espaço livre do pensamento; às vezes apenas folhas, e semblantes, e sensações: rasgadas à pressa ou por engano do toque morno das tuas mãos.
Às vezes um nada, que não consegue ser em palavras apenas nada. Às vezes o frio, e não apenas o frio, mas o frio que sinto para lá da pele, e, de pele em pele, um frio que persiste à passividade dos dias e aos encontros furtivos dos meus olhos com o vácuo. Às vezes só o ritmo da chuva: o calor, a quietude da protecção dos lençóis, acomodada longe de tudo, especialmente da noite. Às vezes, tanta coisa que não deves saber por mim. Que talvez já saibas. Que talvez tenhas sempre sabido.

06/11/2006

6 de Novembro, 2006


«Apesar de ser um ateu convicto, é arrebatado de surpresa por momentos de extraordinária exaltação. Fora de nós não existe nada a não ser estados de espírito, pensa ele; um desejo de consolo, de conforto, de qualquer coisa melhor do que esses débeis pigmeus, do que esses fracos, esses feios e cobardes seres humanos. Mas se conseguimos conceber tais figuras, então é porque elas existem, de certo modo, pensa ele; e avançando pelo trilho, como os olhos postos no céu e nas ramagens, logo lhes atribui uma forma feminina; observa o decoro e majestade que assumem, e como distribuem, agitadas pela brisa, num sombrio mover das folhas (…).
São essas as visões que ao viajante solitário oferecem grandes cornucópias de frutos, ou que lhes murmuram canções, como sereias cavalgando as verdes ondas (…)
Tais são as visões que flutuam, incessantes, ladeando as coisas, interpondo o seu rosto entre nós e o real; visões que amiúde dominam o viajante solitário, fazendo-o perder o sentido da terra, o desejo de voltar, e concedendo-lhe em troca uma paz absoluta; como se (pensa ele […]) toda aquela febre de viver fosse a própria simplicidade (…)»
Mrs. Dolloway, Verginia Woolf