01/04/2018

Cartas de Lisboa XXI

Escrever-te nunca me salvou de coisa nenhuma, mas sempre que não aguento mais nada, é aqui que volto. Tudo isto foi um erro e quando os erros se tornam pesados demais, a gravidade do seu peso deixa-nos doentes. Está a acontecer. Sempre soube que um dia acabaria por acontecer. O peso dos erros, a entropia própria das vidas que roubámos e das vidas que fingimos, o choro convulsivo que nos enjoa e nos faz doer o corpo todo. Tudo isso a acontecer como sempre previmos. Um dia (ainda não) não aguentarei mais. Numa escalada de sintomas a corroerem os nossos sonhos e a desmascararem a fragilidade das nossas memórias. Tudo começou antes de ti. Foste também apenas um sintoma. Amar ao acaso, seguir o rumo das histórias destinadas ao fracasso, fragmentar a minha vida em gavetas e caixinhas, não me conseguir tolerar como inteira. Eu que sempre quis conhecer a verdade dos outros e me esforçava tanto para vestir as suas vidas! E tão previsivelmente presa ao peso da insónia, dos erros, dos remorsos, da prisão que é não suportar nada do que acontece à minha volta.
Ficou de repente visível e ao mesmo tempo ficou pior. Os doentes são eternos culpados - sem ninguém que lhe sustenha a culpa em surdina. Os doentes são maus. Não toleram a vida, somatizam o desapego, somatizam a vergonha. E eu que sempre quis conhecer a verdade dos outros! Agora estou sozinha, e se não tão sozinha, mais sozinha ainda do que poderia alguma vez imaginar. As pessoas dão-me náuseas e a solidão uma tremenda vontade de morrer. Deixei de ter uma casa onde voltar no Natal. Esqueci-me do sabor e dos cheiros e do perdão inconsequente dos nossos pais. Ninguém me reconhece, mas também ninguém me deu como perdida. 

06/10/2017

Cartas de Lisboa XX

SE TERMINAR ESTE POEMA, PARTIRÁS


Se terminar este poema, partirás. Depois da
mordedura vã do meu silêncio e das pedras
que te atirei ao coração, a poesia é a última
coincidência que nos une. Enquanto escrevo
este poema, a mesma neblina que impede a
memória límpida dos sonhos e confunde os
navios ao retalharem um mar desconhecido
está dentro dos meus olhos – porque é difícil
olhar para ti neste preciso instante sabendo que
não estarias aqui se eu não escrevesse. E eu, que
continuo a amar-te em surdina com essa inércia
sóbria das montanhas, ofereço-te palavras, e não
beijos, porque o poema é o único refúgio onde
podemos repetir o lume dos antigos encontros.

Mas agora pedes-me que pare, que fique por aqui,
que apenas escreva até ao fim mais esta página
(que, como as outras, será somente tua – esse
beijo que já não desejas dos meus lábios). E eu, que
aprendi tudo sobre as despedidas porque a saudade
nos faz adultos para sempre, sei que te perderei
em qualquer caso: se terminar o poema, partirás;
e, no entanto, se o interromper, desvanecer-se-á

a última coincidência que nos une.



MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in O CANTO DOS VENTOS NOS CIPRESTES

26/06/2016

Cartas de Lisboa XIX

Last Night (2010)


Há sítios em nós que não deviam existir. Odeio lembrar-me daquela despedida. Odeio pensar tanto em ti. Há 922 dias que me fui embora – que tu te foste embora. Odeio querer escrever-te tantas vezes e saber que tu desististe de me responder. Odeio que sejas importante, depois de tanto tempo. Odeio esta moral dos filmes: tu só existes porque passamos menos de 72 horas juntos. Só existes porque escrever-te nunca foi suficiente e porque a vida te aconteceu, e a mim também, mas eu fiquei sempre refém do reflexo do homem que nunca foste e que agora mais ninguém vai conseguir ser.

Há sítios em nós que não deviam existir porque estão armadilhados. Seria mais fácil acreditar em amores impossíveis, na lentidão com que os destinos se concretizam ou em distâncias insuportáveis. Mas nem tu nem eu alguma vez acreditamos nisso. Escolhemos vidas bem debaixo dos nossos narizes. Tu e eu nunca existimos, na verdade. Não como planeámos.

Recordo-me naquela noite em que escreveste. Preciso parar de pensar em ti. E eu deixei armadilhar-me. Pediste desculpa tantas, tantas! vezes - que eu perdi sequer o direito de te odiar. E ter a tua simpatia, e a tua confiança, a certeza ingénua que quase foi real, tudo isso me tem refém da eterna armadilha que me montaste. Da armadilha que me montaste sem querer. És um homem bom que me tentou amar. E tudo isso é extraordinariamente triste. Não fomos desenhados um para o outro e no entanto a minha vida ficou suspensa na tua boca. Mantenho de pé as pontes instáveis que nos ligam e finjo que elas conseguem ainda suportar o peso do tempo. Sei que um dia vais casar e um dia vais ter filhos e um dia talvez voltes de mão dada com eles. Encontrar-me-ás de costas voltadas para mim própria, na eterna depressão que é não ter verdadeiramente escolhido nada do que nos aconteceu e ainda tão pateticamente apaixonada pelas portas que tu deixaste entreabertas.

Há sítios em mim que não deviam existir mas existem. Talvez por ter sido a mais infiel das pessoas que conheço. A passagem do tempo sempre foi aflitiva e eu não podia deixar passar em branco as horas que um dia se podiam tornar em histórias. No fim do dia, dormir sozinha não era um problema mas um disfarce. Tu nem me conheces, talvez tivesses ficado se me conhecesses. Passaram-se 922 dias desde que me deixaste no aeroporto e aquela nem era eu - há tanto tempo que não sou eu. Nos primeiros meses, tive pesadelos todas as noites. Acordava suada, convencida que tinha gritado o teu nome durante horas. A negação durou demasiado tempo e hoje o luto voltou ao início.



28/12/2015

Cartas de Portalgre III

coton. by moumine


Somos sobras, apenas sobras. Tu sabes disso. Sempre soubeste - o exasperante desejo de me permitir consumir por esta paixão cega e ofensiva que nunca desistiu de mim. Tu não sei. Na minha fantasia mais doente, tu e eu teremos sempre uma história por acrescentar. Quase esqueço o teu corpo magro e tenso a tremer-me nas mãos. Quase esqueço que não nos olhamos nos olhos, não verdadeiramente. Mas eu era tua, tão levianamente tua, como hoje sou, à revelia de toda a gente e, ainda assim, tão estupida e pateticamente tua.
Orbito em torno da tua lembrança há 5 anos. Hoje sei o quão o tempo se torna inverosímel quando se fica paralisado. Não sei se te amo. Sei que me possuis, apesar do despeito, da distância, do mau sexo. Apesar dele. E apesar dela.
Entre a arte de esquecer e a incapacidade de lembrar, reinventamos a nossa história. Limámos os silêncios, beijámos melhor que nos livros. A saudade tira-nos o ar, e o sono, e a vida, mas sem querer, hoje somos apenas memórias delirantes que nunca aconteceram.

A vida que nós quisemos foi cancelada.

24/08/2015

Cartas de Portalegre II

lemonade by moumine

Aconteceu tudo há demasiado tempo. É irreal que ainda existas e que todos os dias te percas e eu te recrie, e eu te evoque, e por mais que morras, eu nunca deixe de acreditar que um dia vou deitar os meus olhos sobre os teus e vou ser tua, mais que tua, vou ser finalmente minha, muito minha - na derradeira aventura de amar a tua voz e o teu vagar e a tua eterna distância. Amor assim é certamente proibido. Morreria na tua boca, tenho a certeza. Não suportaria o teu toque, a tua nudez, o calor absurdo do meu rosto nas tuas mãos. Aconteceu tudo há demasiado tempo mas ainda aqui estamos os dois. Amo-te mais com o vagar dos anos, eis uma certeza. 

06/03/2015

Cartas de Portalegre

tomette. by moumine

foi bom ver-te. um dia, talvez, te concretizes na minha vida como um ponto final. todas as noites me lembro. sustenho a respiração, abafo o soluço, recrio os teus olhos fixos no chão; e eu ali, ao teu lado, tão longe. tão longe,tão hirta, tão fria, tão só.

e ali fico, hirta, triste, longe, partida, a fingir. finjo sempre, e às vezes dou por mim a chorar. sei-te escondido num luto onde não me deixas entrar - logo tu, que eras tudo, que eras chama, vento, história. não te posso amar porque não saberia fazê-lo. o teu corpo, as tuas mãos enormes, o teu desdém. mas fazes-me falta em tudo o que sou, em tudo o que faço. trago comigo a agonia de não saber de ti, de querer repetir-te em todos os estranhos, de te querer contar, de ter a certeza que em mim sobrará sempre um vazio maior que eu, maior que todas as coisas.

afinal amo-te. na incongruência que é ignorar estes porquês de andarmos há tanto tempo à espera do mundo. não sei onde estás. todos os dias, nestas minhas latitudes perdidas. não sei onde estás nem porque te importas em continuar tão longe. o meu amor foi um amor frio. contemplativo. infiél. indisponível. não sei onde estás mas procuro-te todos os dias. na lista telefonica, nas salas de espera, nas janelas de todos o aviões. em todos os homens em fuga. 

faltaram-nos as palavras. mais que o tempo, mais que a noite. eu só queria ter-te dito como paralizaste a minha vida e me empurraste nete vício de saltar sem rede. de amar sem destino, de ficar sem razão, de morrer sem ti.

um dia, talvez, te concretizes na minha vida.

22/09/2014

Cartas de Évora VIII

verre de soie. by moumine
Pudesse eu ao menos contar-te como foi acordar naquela manhã, depois de ti, depois de mim. Pudesse eu explicar-te como foi acordar para ti todos os dias da minha vida. Como foi enfrentar o vazio que era, e sou ainda, percebendo enfim que foste apenas um acaso, que eu fui apenas uma das tuas distâncias, que os teus desejos eram de aguarela, de uma pesada insónia, que nem eu nem ninguém conseguiamos mudar. Pudesse eu explicar-te como mudaste a minha vida, muito além daquela última carta que te escrevi – a única que cheguei de facto a enviar, sem nunca ter tido resposta.
E o teu silêncio não me traz paz. Tudo se tornou corrosivo – a chuva, as manhãs, os lugares que nunca verás. Eu queria contar-te a minha história, queria tanto!, mas não tinhamos idioma comum, um que em que realmente nos encontrássemos os dois, um em que me lesses por detrás das vírgulas. Queria que acreditasses que me salvaste, por um acaso. E que a memória dessa noite me salvou nos quatro anos que se seguiram.
Hoje já não existo, nem para ti, nem para mim própria. Estou ainda naquele segundo andar em Wazemmes a ouvir-te tocar. Foi um rompante de magia – e eu não consegui lidar com isso. Achei que sim. Achei que eram todas essas memórias (inventadas?) que me tiravam da cama de manhã; que me moldavam para ti, sem nunca desejar realmente repetir-te. Não foi certamente paixão. Foi uma outra coisa; talvez o embate da ingenuidade dos meus vinte anos com a honestidade da tua vida sem fronteiras. Não sei, nunca o soube.
Até nunca mais, dir-te-ia, se tivesse coragem - mas amanhã, novamente, vou procurar-te em todos os estranhos do mundo e viver a decepção um dia de cada vez.


26/07/2014

Cartas de Évora VII

Depois de tanto tempo - uma década, talvez, ele estava no meu sonho. Mas, magia por magia, ele já não era ele, a magia era outra e a minha ausência um facilitador de sonhos - só que este amor era ainda terno e calmo e fresco. Só que este amor tinha ainda 20 anos e o mesmo medo de falhar.
Pensei: talvez devesse voltar a vê-lo, talvez devesse escrever-lhe, talvez devesse contar-lhe. Toda a nossa vida era uma vertigem de partidas - e só a memória dele me valia. E de repente, ele estava de corpo e voz dentro de mim, tal e qual como da primeira vez. Como talvez tivesse estado sempre: no mais impenetrável dos sonos, na mais sincera das memórias. Eu e ele, naquele segundo andar em Wazemmes. Eu e ele, sob o mesmo guarda-chuva, sob o mesmo Setembro. Sob o mesmo Setembro de onde nunca saí, ao qual me moldei - devoção, música e encanto - eu procurava-te em todas as esquina e, sem querer, um ano se passou, sem que tivéssemos voltado àquele Setembro em Wazemmes. E de repente, estava tudo dentro do que podia até ser um pesadelo, o perder-lo de novo, várias vezes na mesma noite, o perde-lo no materializar do primeiro cheiro, no materializar do primeiro toque. O perde-lo ao primeiro sinal de fraude.

Da última vez que o vi, deixou-me um quadro assinado por ele - que eu perdi nas mudanças. No verso dizia «quão raro e maravilhoso era ter a certeza que conhecemos alguém».
Hoje de manhã escreveu-me de novo e disse-me que ia chegar.

02/06/2014

Cartas de Évora VI

reflet. by moumine
Foi tudo há tanto tempo. Não consigo amar-te como amei o mundo e como sinto o mundo em estilhaços dentro do que me resta. Toda eu minada de lugares onde não podes entrar. São segredos e são histórias e são canções que já ninguém sabe tocar. A mesma memória, todas as manhãs. Como se não eu não tivesse acontecido de tantas outras formas. Os últimos quatro anos para nada. Só o desejo de voltar, só o desejo de ir. O prender-me dia após dia àquela tarde em Wazemmes. O esquecer-me para me lembrar. Tu de costas voltadas. Tu na minha boca. Tu tão longe. São meses e anos e hoje como naquela noite em São Paulo. E hoje como naquele cemitério em Paris. Ainda te odeio e ainda te amo de formas que não consigo entender. Preciso ver-te e preciso tirar-te da minha vida. Como a cruz que és. Um eterno fim por concretizar. Fui uma pessoa melhor porque te tinha, porque não te tinha, porque o tinha a ele, mas principalmente porque sempre o terei. O lugar na terra que repetirei por saudade todas as manhãs, até que a consciência me deixe. Não sei que amor é este, mas faz-me bem e adia a tristeza que és ainda na minha vida.

Foi tudo há demasiado tempo.

22/05/2014

Cartas de Évora V

Quero contar-te que conheci um homem maior que tu. Foi talvez por fugir disso que naquela noite me viste no Porto, de mini Super Bock na mão, a fingir que não te vira. Sem ele, eu nunca seria uma mulher disponível para quebrar o gelo. Com ele, toda a minha vida se tornou perplexidade, vontade de ir embora, desejo de saber quem eras. Procurei-o em mim sempre que nada valia a pena - a lembrança nublada de várias Leffes ainda hoje me fazem continuar. Ele era o homem da guitarra. A cidade inteira sabia que o amava para lá do razoável - e que o amaria sempre, pela simples razão de que nós não nos conhecíamos, não de verdade. E isso pouco me importava. Era um amor que me mantinha em marcha. Que me mantinha. Era uma lembrança recriada à qual me agarrei quando me tiraste da tua vida.
Porque ele era um homem maior, muito maior que tu. Na tua ausência, eu fazia-me pequena e escondia-me o melhor que podia dentro das noites. Era a ausência dele que me acordava. 
Há dois meses escrevi-lhe: queria-o na minha vida, desta vez, a sério. Há pessoas que nunca se vão realmente embora e ele podia até ser uma delas, mas desta vez, eu queria-o aqui. Queria-o em Lisboa. Queria a voz dele em Lisboa, com as respectivas rugas de expressão e com a devida bagagem.